Ambiente, história, património, opinião, contos, pesca e humor

31
Dez 17

Para terminar o ano deixo-vos um conto policial que escrevi em 2010 e ao qual perdi o rasto neste intricado labirinto de arquivo digital. Hoje, por acaso, encontrei-o. Espero que gostem.

 

Coçou a orelha direita e deixou-se ficar encostado à ombreira da porta que dava para o longo corredor. O inspector Maurício seguia com olhar as idas e vindas dos elementos da brigada técnica que recolhiam os vestígios possíveis.

- Raio de sítio para um gajo esticar o pernil – observa o Cabral espreitando para dentro da sala – Encontraram alguma coisa?

- Não… e tu?

- É pá, cambada de murcões… ninguém sabe nada. Não viram o gajo chegar e a sala devia estar fechada.

- Quem é que tem a chave?

- Deve haver uma dúzia de chaves pelo menos. Desde as gajas da limpeza, aos professores, o segurança… sei lá, são mais que as mães!

- Vais apurar isso de seguida e aproveitar para dizer-lhes que não saem daqui até novas ordens. Temos de os começar a interrogar em seguida… O Ramos deve estar aí a chegar e vêm um ou dois estagiários para ajudar.

- Ajudar ou estorvar, carago! Sabes bem…

- Deixa-te de coisas, que tu também foste maçarico… Vai lá saber da questão das chaves e diz ao segurança que venha ter aqui comigo. – Atalha o inspector da Judiciária.

Dentro da sala um dos técnicos esvaziava os bolsos ao cadáver que teve de ser virado pois fora encontrado de bruços. Uma grande mancha de sangue tinha ensopado a camisa de flanela na zona do peito.

- Passa-me a carteira – pede o Inspector enquanto enfiava umas luvas de látex.

A carteira preta era fina, vulgar, em material sintético e fechada com velcro. No interior a carta de condução, o bilhete de identidade, um talão de compras de uma conhecida loja de material electrónico e um cartão multibanco. Indiferente, voltou a entregar a carteira que foi fazer companhia aos outros objectos retirados do cadáver e acondicionados num saco de plástico transparente.

- Foi o senhor que me mandou chamar? – pergunta um homem fardado no meio do corredor.

- Aaah… o segurança! Sim, quero perguntar-lhe umas coisas. Não é um interrogatório formal, mas preciso que me elucide sobre o ambiente aqui na escola.

-Sim senhor, estou à sua disposição.

- Há por aqui algum sítio onde se pode falar…

- Uma das outras salas ou então temos lá ao fundo uma pequena sala de convívio usada pelos funcionários.

- É longe?

- É ali ao fundo, à esquerda e não deve estar lá ninguém a esta hora.

- Então vamos lá.

O segurança percorreu o corredor um passo à frente do inspector que aproveitou para melhor o apreciar. Calças e blusão da farda cinzentos, um crachá brilhante ao peito com a insígnia da empresa. Cerca de um metro e oitenta, crânio rapado a disfarçar uma calvície precoce, não deveria ultrapassar os trinta e cinco anos.

- Então diga-me lá, o homem era presidente da associação de estudantes?

- Exactamente.

- Mas ele já não é novo!

- Pois não, ele já está na escola há muitos anos.

- Estou a ver, não ligava nada aos estudos e a família…

- Não é isso – interrompe o segurança – ele já está a fazer o terceiro curso.

- Não tinha mais nada que fazer?

- Ele tem uma empresa de alumínios… Acho que tem um sócio. Não sei bem.

- Sabe o nome da empresa?

- Não sei o nome da firma, mas ele é de Santa Marta.

- De Penaguião? Tão longe?

- Não, senhor inspector. Estou a referir-me a Santa Marta de Portuzelo. Aqui perto na estrada para Ponte de Lima.

- E da chave da sala que me diz?

- Todos os professores que dão aulas nessa sala têm a chave. Eu tenho outra na portaria e uma no chaveiro central.

- E o pessoal de limpeza?

- É verdade, já me esquecia.

- Hoje de manhã o falecido… tenho aqui anotado o nome… Exactamente, Jorge Gonçalves! O que eu quero saber é se o viu entrar?

- Não senhor, pela porta principal não passou.

- Tem a certeza?

- Absoluta, absoluta… não!

- Porquê?

- Porque houve um momento que fui ao WC e mais tarde fui ao gabinete do Sr. Ricardo dar-lhe um recado.

- Onde?

- Na secretaria, foram só uns segundos, mas podia muito bem ter entrado nesse momento e eu não o ter visto.

- Tem alguma ideia do que podia estar a fazer na escola logo de manhã?

- Que saiba não havia nenhuma reunião agendada e não faço ideia o que o levou até àquela sala.

- O Jorge Gonçalves tinha lá aulas habitualmente?

- Ele é de desporto que só usam as salas novas.

- Explique-me isso que não estou a perceber.

- Ele é aluno… huum… era aluno do curso de desporto, que só tem aulas teóricas na parte nova da escola. Posso levá-lo lá se quiser…

- Mais tarde. Quer dizer que o crime foi cometido numa das salas antigas.

- Exactamente, senhor inspector.

- Sabe se ele tinha algum problema com alguém? Um colega ou professor…

- Não lhe sei dizer. Repare, eu pouco lido com os alunos, apesar de os ver passar todos os dias à minha frente ao entrarem e à saída. Da maior parte, nem sei os nomes, nem os cursos. Apenas os conheço de vista…

- Mas este era bem conhecido.

- Claro, já fazia parte da mobília, como se costuma dizer. Além disso passava muito tempo na associação…

- Que tem instalações na escola…

- Exactamente e bem perto daqui, por sinal.

- Sim?

- Por trás deste espaço há umas escadas que levam às duas salas da associação de estudantes.

- E já foi lá alguém ver se estava tudo normal?

- Quando chamamos a polícia fui lá com um agente e a porta está fechada.

- Entraram?

- Não senhor…

- Tem as chaves dessa porta?

- Tenho… quero dizer, não! Estão na portaria.

- Então vá buscá-las para darmos uma vista de olhos.

Enquanto aguardava, o inspector Maurício tirou do bolso a caixa das cigarrilhas e meteu uma entre os lábios. Percorreu o largo corredor para lá e para cá distraidamente, olhando para o campo de jogos relvado que ocupava todo o espaço traseiro do recinto escola. Voltou a guardar a cigarrilha enquanto reflectia sobre o que levaria um aluno, que era também presidente da associação de estudantes a comparecer às 9 da manhã de um dia de férias numa sala de aulas. Sobre a causa da morte não subsistiam grandes dúvidas, pois eram visíveis dois golpes profundos no lado esquerdo do peito, apesar de não terem ainda encontrado a arma do crime. Uma faca bastante fina ou um estilete tinha-lhe dito o técnico que examinara o cadáver.

- Preciso de um café – resmungou e dirigiu-se para o bar quando viu o segurança avançar na sua direcção. Deu meia volta e encaminhou-se para as escadas estreitas que levavam a sede da associação de estudantes.

Quando o segurança abriu a porta e viram uma sala que se tinha como iluminação natural a luz que se esgueirava pelos acanhados postigos posicionados ao nível do jardim. A sede estava a precisar de uma boa arrumação pensou o inspector ao avançar para a sala do fundo, um misto de sala de reuniões e gabinete da direcção. Parou à porta ao distinguir um vulto caído sobre a puída carpete.

- Outro…

- Outro, quê, senhor inspector?

- Outro corpo, carago… Esta merda vai-nos dar que fazer… Vá lá acima dizer a um dos técnicos que venha cá. Eu fico por aqui.

Pegou no telemóvel, ligou para o inspector chefe Peres a comunicar a descoberta e a pedir reforços perante o avolumar de trabalho que iria ter pela frente.

- Tenha paciência mas de momento não tenho ninguém para o ir ajudar – dizia-lhe o chefe - Vá-se desenrascando com o seu pessoal, mais logo, quando tiver gente livre envio-os aí para Viana… Antes que me esqueça, tenha cuidado…

- Com a imprensa! Já sei, chefe, já sei!

- Ponha esses calões da PSP a trabalhar! Estão mal habituados, só a passar multas e com o cu alapado na cadeira.

O inspector Maurício sorriu ao pensar que o Peres passara os últimos quatro anos com o “cu alapado”, como ele dizia, desde que fora promovido a inspector chefe.

- Se um dia lá chegar, até fico apanhado só de pensar que tenho de estar o tempo todo a folhear relatórios que nem para limpar o cu servem – dizia o inspector Maurício aos colegas, quando o tema de conversa caía nas sempre polémicas promoções e nos louvores atribuídos.

O cadáver encontrado na sala da associação foi rapidamente identificado como sendo de um aluno de gestão artística, que também pertencia à direcção da associação de estudantes.

Os agentes Ramos e Cabral tinham-se instalado em duas salas de aulas e começaram os interrogatórios sob um coro de protestos dos professores, que se viam impedidos de sair das instalações. Os dois estagiários desdobravam-se em múltiplas diligências, mais parecendo moços de recados que agentes de investigação criminal.

O inspector Maurício tivera uma entrevista com a directora da escola e o director de serviços académicos mas tinha sido inconclusiva. Ninguém tinha ideia do que tinha acontecido. A esperança residia nos vestígios que os técnicos estavam a recolher, mas todos tinham consciência que estavam num espaço utilizado diariamente por centenas de alunos, professores e funcionários. Nem queria imaginar a quantidade de impressões digitais que os técnicos de dactiloscopia teriam de analisar.

Depois de engolir no bar da escola uma sanduíche de fiambre e um sumo, convocou a sua equipa para um pequeno brienfing que teve a particularidade de se realizar no exterior junto à entrada, de forma a puder saborear a cigarrilha que passara a manhã a sair e a entrar na caixa.

- Estes gajos estão a procurar proteger-se uns aos outros.

- Ó Ramos, isso nem parece teu. Então achas que nos iriam dar pistas que os pudessem incriminar.

- Bem, afinal o que apuraram nos interrogatórios que efectuaram? – Pergunta o Maurício.

- Ninguém os viu entrar na escola, não foi Cabral?

- Pois foi… Mas os gajos foram assassinados há poucas horas… Que é que disse o Dr. Pimenta?

- O exame preliminar aponta o momento do óbito para um intervalo entre as sete e as oito da manhã… e a família deles confirma que passaram a noite em casa. A PSP já encontrou os seus automóveis?

- Ainda não senhor inspector – diz um dos estagiários – mas o mais novo… aquele que foi encontrado na cave da associação, tem o carro estacionado à porta de casa.

- Será que o outro o foi buscar?

- Falei com a irmã dele e ela ouviu-o sair de casa, mas não se apercebeu do barulho de algum automóvel a arrancar.

- Continuem com os interrogatórios que eu vou falar com o comissário da polícia. Vocês – virando-se para os estagiários - vão passar a pente fino as imediações da escola. Já vi uma estação dos correios e do outro lado há um bairro. Deve haver algum café ou mercearias… Interroguem os comerciantes e se encontrarem algo relacionado com o caso, chamem de imediato o Ramos ou o Cabral. Entendido?

 

 

- Resumindo, andamos às aranhas… concluiu o inspector chefe Peres, recostando-se na cadeira.

- Às aranhas não andamos, mas também não temos muito a que nos agarrar… – responde o inspector Maurício, sabendo que não adianta nada argumentar com o chefe.

- Bem… recebi um telefonema relacionado com o caso que tem de ser levado em consideração… Assunto sob reserva…

- Mau…

- Temos os Serviços de Informação metidos no assunto.

- Qual deles? O SIS?

- Exactamente. O tipo da associação de estudantes era agente deles.

- O presidente?

- Sim – Admite o inspector-chefe soltando um longo suspiro.

- E o outro?

- Não tinha qualquer ligação com essa gente.

- Então vamos abandonar a investigação?

- Não, eles estão igualmente preocupados, porque não encontram ligação com as tarefas desse agente… pelo que percebi ele nem sequer tinha nada entre mãos, não tinha qualquer dossier à sua responsabilidade.

- Limitava-se a vigiar..

- A coçá-los, diz muito bem… e nós a descontar para esses inúteis… Agora que pretende fazer?

- Regresso a Viana após falar com o dr. Pimenta e com alguém do laboratório.

- Mantenha-me informado e tenha cuidado com…

- Os jornalistas! – Rematou o inspector Maurício, que conhecia de ginjeira o discurso do chefe.

- Isto é pólvora, Maurício! Se cai nas malhas desses gajos, pfff…

 

 Reunidos à volta da mesa onde tomavam o pequeno-almoço, os investigadores ouviam o resumo feito pelo inspector Maurício.

- O patologista diz que foi com uma faca de escalar peixe ou algo semelhante o que nos abre outras possibilidades; podemos estar a lidar com um pescador ou pelo menos alguém que tem acesso a esse tipo de facas, em casa ou no trabalho…

- Ó pá… e o motivo carago?... não temos um motivo que justifique estes assassinatos – enerva-se o Cabral – A não ser que fossem paneleiros e viessem…

- Deixa-te disso! Já investigamos por esse lado e nada. É provável que hoje ou amanhã tenhamos a listagem com os telefonemas deles.

Toca um telemóvel, o inspector Maurício olha para o visor, franze o sobrolho, atende com um “sim” expectante.

- O próprio, não incomoda nada… diga comissário.

- …

- Vou imediatamente… Isso é para norte?

- …

- Quinze quilómetros, Sereia da Gelfa… logo a seguir, à esquerda – repete o homem da Judiciária, desligando o telefone.

- Encontraram o automóvel do Jorge Gonçalves abandonado, junto ao mar, na praia da Gelfa.

- Eu sei onde fica – diz um dos estagiários – é uma zona isolada, tem um pequeno castelo e um sanatório para malucos, mas acho que está fechado.

- Eu vou lá ver, vocês continuam com os trabalhos em curso.

 

Estacionou quando o agente da GNR o mandou parar e dirigiu-se para o bosque de austrálias que invadiam as dunas litorais. Para trás ficara o Forte do Cão, umas ruínas do século dezassete a precisarem de intervenção sempre adiada pela razão tão velha como a nacionalidade, a falta de verbas. Ao longe avistava-se uma povoação subindo a encosta do monte e uma imensa língua de areia dourada, a praia de Âncora.

Uma área tinha sido delimitada com fita plástica multicolor e vários agentes da GNR observavam os trabalhos de dois colegas do núcleo de investigação criminal. Depois de feitas as apresentações informaram-no que o automóvel fora encontrado aberto, com as chaves na ignição e sido alvo de limpeza de impressões digitais. Volante, alavanca de velocidades, manípulos de portas e outros pontos tinham sido limpos antes de o abandonarem, o que revelava a precaução consciente dos criminosos. Era ponto assente que estavam a lidar com mais de uma pessoa porque o lado direito do carro também tinha sido limpo. Dois, pelo menos, provavelmente três, porque alguém os deve ter vindo recolher àquele ponto ermo da Praia da Gelfa.

- Já vem a caminho um reboque para levar o automóvel ao laboratório. Façam-me o favor de verificar nas imediações se há algo de interesse. – pediu o inspector Maurício.

- Já demos uma volta por aí, mas vamos repetir com mais calma – informa o sargento da GNR – Amílcar e Pereira vão com o cabo Presa para o norte, por ali; os outros vão para aquele lado. Atenção, qualquer indício deve ser sinalizado…

- Já agora… - interrompe o inspector – prestem atenção a alguma situação de solo revolvido. Deve estar tudo coberto de folhas secas, não é fácil distinguir, mas pode ser importante.

 

Entre duas garfadas de esparguete atende o telemóvel, a Rosa saía de serviço no Hospital de S. João à meia-noite e não lhe agradava passar a noite sozinha. Não teria outro remédio…

- Sei lá, isto está complicado. Talvez amanhã… Tenho uma chamada da directoria em espera, desculpa… um beijo.

Do laboratório informaram-no que o automóvel encontrado poucos indícios revelava, mas um dos cães treinado na detecção de explosivos sinalizou claramente um transporte recente na bagageira.

- Andaram a transportar explosivos no carro.

- Encontraram vestígios? – Perguntou o Ramos sem levantar o olhar da costeleta de novilho que lhe enchia o prato.

- Foi o cão que detectou o cheiro.

- Dois cabrões esticados! Um deles era bufo na escola! Agora um carro que transporta explosivos… só nos falta dar de caras com uns gajos da ETA – resmunga o Cabral com a habitual linguagem de calão da Ribeira, mais propriamente da Cantareira.

- Já pensei nisso e temos que abordar a caso também por esse prisma, mas agora vamos apanhar com o SIS em cima… de certeza. O chefe já lhes deve ter telefonado.

- Então amanhã temos esses maricões a meter o nariz nos nossos cus!

- Tenho de ir ver o e-mail que o Dr. Pimenta me enviou com os dados preliminares da perícia ao automóvel. Aguentem aqui, vou ao quarto ligar o portátil e já venho.

 

O relatório revelou-se pouco esclarecedor. Na bagageira, onde o cão tinha detectado o odor de explosivos foram encontrados alguns grãos de areia grosseira e terra com elevados níveis de azoto.

- Provavelmente puseram um plástico a cobrir o fundo do carro e ao retirarem-no caiu um pouco de terra. Eles estão a fazer análises comparativas para ver se detectam a região de origem.

- Inspector – começa um dos estagiários, algo acanhado – ocorreu-me uma ideia…

- Diga, diga…

- Azoto é um fertilizante, um adubo e há zonas onde misturam areia na terra para a tomar mais macia, melhor, menos compacta e mais apropriada para certas culturas.

- Está a falar-nos de terrenos agrícolas?

- Humm… Exactamente, inspector. Estou a falar de terrenos de cultura intensiva. Possivelmente estufas…

- Onde?

- Talvez na zona da Póvoa de Varzim.

- Porquê na Póvoa? Pode ser noutro lado qualquer!

- Poder, pode… Mas na zona da Póvoa é vulgar misturar areia grossa na terra e no relatório falam de “areia grossa”. Mais, na Póvoa produzem hortícolas que precisam de muito azoto para se desenvolver. Não fala de níveis elevados de outros fertilizantes, apenas azoto.

- Bem pensado, vale a pena investigar.

- É pá onde é que aprendeste isso da agricultura? – Pergunta o Ramos intrigado.

- Os meus pais são comerciantes, mas os meus tios e os meus avós são agricultores… na Apúlia.

- Já que tens ligações à zona e ao meio vais auxiliar o Ramos a averiguar se há alguma conexão entre as vítimas e a zona da Póvoa.

 

- Sente-se e conte-me como é que arrumou o caso de Viana – convidou o inspector chefe, fechando a pasta que tinha à sua frente.

- Um caso complexo. Nem faz ideia das voltas que aquilo levou… Quem diria!

- Faça-me um resumo. Os pormenores ficam para o relatório.

- A chave estava nos grãos de areia e terra encontrados na mala do carro. Um dos nossos estagiários estabeleceu ligação com a zona da Póvoa de Varzim que coincidia com a morada da namorada do Jorge Guimarães e apurou-se que ela possuía várias estufas em A-Ver-O-Mar, não sei se sabe onde…

-Eu sei, continue!

- Ao princípio refugiou-se na choradeira do costume, mas quando recolhemos uma amostra da terra das estufas, falamos dos explosivos e de levar lá o cão para farejar… abriu-se toda! Atirou com as culpas para o namorado falecido, que a convencera a enterrar uns bidões plásticos, que de início ela pensara que era droga, mas que ele lhe mostrara que tinham apenas explosivos para serem usados pelos pescadores das traineiras. Algo inofensivo, no dizer dela.

- Para a pesca da sardinha?

- Sim… Principalmente para a sardinha. Parece-me que também se usa para outros peixes, desde que estejam em cardume. Fazem um cerco com as redes, atiram o explosivo lá para o meio e o peixe ou morre na explosão ou foge e vai ao encontro da rede. Mas eu de pesca… pouco sei. O que sabemos agora é que o tipo da associação de estudantes alem de ser agente do SIS, contrabandeava explosivos que comprava numa empresa da Póvoa de Lanhoso. Também já os entalamos, porque aquilo era uma vigarice pegada… Parecia um supermercado de material explosivo. Amonite, gelamonite, goma2, havia de tudo! Continuando… Depois enterrava o material nas estufas da namorada, tudo acondicionado dentro de uns bidões plásticos herméticos e vendia a retalho a alguns mestres de traineiras de Viana, da Póvoa e principalmente de espanhóis de Vigo e de outros portos da Galiza. O problema é que o tipo além de vender ainda quis fazer chantagem com um dos armadores, um tal Gallardo de Pontevedra, quando se apercebeu que o tipo revendia parte do material a outros e que acabavam por se perder não se sabe bem onde.

- País Basco? – Pergunta o inspector Chefe Peres.

- Não sabemos… É possível. O Jorge Gonçalves queria os contactos do Gallardo para fazer directamente o negócio ou ameaçava-o acusar perante a polícia espanhola de fornecedor dos terroristas.

- Que filho da mãe…

- O que ele não sabia é que o Gallardo é cunhado de um professor da escola e lhe montou uma armadilha ao marcar…

- O professor? – Interrompe o inspector chefe Peres.

- Bem… agora atiram as culpas um para o outro. O mais provável é que o professor soubesse que era uma armadilha, mas provavelmente pensou que o cunhado apenas queria meter um susto aos dois rapazes. Foi o professor que abriu uma porta de emergência nas traseiras, perto da sede da associação de estudantes, ao espanhol e mais tarde aos outros dois que foram habilmente separados e assassinados.

- Só não percebo porque é que o outro rapaz da associação foi ao tal encontro, se efectivamente não tinha qualquer participação no negócio dos explosivos.

- O Jorge Gonçalves levou o colega da Associação por segurança. Devia pressentir que o Gallardo era perigoso. Está detido em Pontevedra e o juiz de instrução já emitiu o respectivo pedido de extradição.

- E como descobriram o professor?

- Pelas impressões digitais deixadas na barra de abertura da porta de emergência. O normal seria encontrar impressões do pessoal auxiliar e dos seguranças, não de um professor. A partir do momento que detectamos o relacionamento familiar com o Gallardo foi simples pôr o melro a cantar. Por algum motivo ele era professor de música…

 

 

 

 

 

publicado por Brito Ribeiro às 13:20
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18
Abr 15

Encontrei no Facebook uma referencia ao Catitinha, um homem enigmático, despontando na memória dos mais velhos, que o recordam a percorrer as praias e a falar com as crianças. Nunca soube de onde vinha, para onde ia, sabia apenas que pernoitava na casa da Dona Titó. Deixo-vos o link onde podem conhecer mais alguma coisa sobre esta personagem extraordinária e um pequeno conto que escrevi no verão de 2012, publicado no quinto volume da colectânea de prosa e poesia "A Arte pela Escrita " da editora Mosaico das Palavras.

 

O Cruzado

CATITINHA-.jpg

A sombra deslizou sobre o meu castelo de areia, imobilizando-se sobre o barquinho de folha-de-flandres, que noutra vida acondicionara chouriças. Endireitei-me, pisquei os olhos doridos pelo violento contra luz. A manhã de estio quase a terminar, o sol no apogeu, dizem hoje ser perigoso para a derme. Nesse tempo não se pensava nisso, o sol tinha melhores humores.

A sombra projetada no meu reino do faz de conta, representava a silhueta de um homem de longa barba branca que se agigantava sobre mim, observando o motivo da minha concentração.

Por um instante fiquei convencido que o Pai Natal tinha descido à praia. Tirou o chapéu de palha de aba larga, enxugou o suor da testa com um lenço grande e voltou a cobrir-se. O areal apinhado de crianças, uns vigiados por mães e amas; outros, habituados desde sempre à “praia das crianças”, livres de tantos cuidados, que se bastavam a si próprios, apenas à hora em que a fome apertava regressavam à penumbra do lar.

O homem confiava a barba com um sorriso triste, distante. Aproveitei esse momento para melhor observar o amarrotado fato de linho branco. Calças arregaçadas, à pescador, deixavam a nu os pés grandes e os joanetes salientes. Olhos azuis, vivos, saltitavam a cada movimento que eu fazia. O cabelo caia em cachos para fora do “palhinhas”, sobre os ombros, aconchegando-se à gola do casaco do qual não destoava a cor.

Repentino, desinteressou-se, deu-me as costas e continuou caminho, calcorreando a areia escaldante até ao próximo grupo de catraios que sonhavam com o castelo dos mouros, entre pás e baldes de plástico que serviam de forma aos torreões inexpugnáveis.

“É o senhor Catita”, “o Catitinha”, “que pena, parece que lhe morreu um filho”, “um filho, um bebé, coitado, ficou assim”.

Para nós era apenas o Catitinha, o homem que velava pelas crianças na praia. Ano após ano, surgia do nada com a missão de assegurar aos outros o que não conseguira evitar a si próprio.

Um cruzado de armadura branca, que ia e vinha sem dar satisfação, respondendo apenas perante o seu desígnio. Um ano, o verão começou sem o Catitinha. Teria o sol adiantado o seu horário, a sardinha abalado para outro portinho, estaria agora na companhia do filho que tanto amara? Não soubemos, mas a praia nunca mais foi a mesma.

publicado por Brito Ribeiro às 09:17
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01
Ago 14

Embora de forma breve, já fiz parte do Orfeão de Vila Praia de Âncora. Não propriamente do orfeão, leia-se grupo coral, mas da secção de teatro. Nunca tive voz para cantorias, nem jeito para dançar, mas a certa altura convenci-me que tinha alguns dotes de representação. Se calhar convenceram-me, já foi há tanto tempo…

Não recordo o ano com exactidão, mas foi pouco depois do 25 de Abril. Disso tenho a certeza!

Tudo começou com o Padre Marinho. A direcção do Orfeão “engatou-o” para director artístico do grupo de teatro e para arranjar gente capaz de dar vida àquela secção, já que ninguém queria pegar naquilo.

A cisão no Orfeão, que deu origem à criação do Etnográfico de Vila Praia de Âncora, ainda estava muito fresca e notava-se uma certa indefinição, alguma letargia, mas também muita determinação por parte de alguns elementos. Eu é que não tinha nada a ver com aquilo, mas anui com entusiasmo ao pedido do Marinho, para participar numa peça que ele queria levar à cena.

Deixem-me abrir um parêntesis para vos explicar quem era o Padre Marinho. Os da minha idade lembram-se dele, mas os mais novos não o conhecem. Era pároco em Âncora, seria, no máximo, dez anos mais velho que eu e alinhava com a malta para tudo, perdão, para quase tudo e conseguia dizer a missa em dez minutos, tipo Pepe Rápido!

Era proprietário de um Datsun 1200 e achava-se um grande condutor, o que não era bem verdade. Felizmente nunca teve nenhum acidente, mas que arriscava um bocado, arriscava! Resumindo, era o que se costuma designar por “gajo porreiro”.

Mas dizia eu, que fui parar ao grupo de teatro do Orfeão de Vila Praia de Âncora juntamente com mais um punhado de amigos, mais ou menos a malta que andava a estudar no Liceu de Viana, o “nosso” grupo.

Recordo a Fernanda Neves e a Fernanda Bouças, a Carla e a Nela, o Chico e o Churriba, o Zeca do Morrosó, o Zé da Linha, a Ilda, o Cândido e o Aristides. De certeza que havia mais alguns, mas de momento não me recordo. Como éramos todos novatos em teatro, excepto a Fernanda Neves que já tinha alguma experiencia, o Marinho decidiu ensaiar uma coisa “ligeira” e “fácil”, uma peça de Bertold Brecht, muito em voga nos meios intelectuais de esquerda da época e que se chamava “O que diz sim e o que diz não”.

Uma peça em dois actos praticamente iguais, que só eram diferentes nos cinco minutos finais (do segundo acto). De fácil não tinha nada, nem para os actores, nem para os espectadores, que ficavam completamente baralhados ao começar o segundo acto e ouvirem tudo com no princípio. Mas para uns actores de gabarito como nós, estava tudo bem!

Depois de dois ou três meses de ensaios, com muita borga pelo meio, foi marcada uma saída para participar no Encontro de Coros na Covilhã; o grupo de danças e o grupo de teatro também iam para dar um espectáculo numa aldeia vizinha.

Foi durante uma madrugada do mês de Junho que entramos para o autocarro, cruzamos o Rio Âncora pela Ponte de Estrada Real e rumamos para sul. Se aqui em Vila Praia de Âncora estava bom tempo, conforme nos aproximávamos da Covilhã a canícula ia aumentando, até se revelar um calor abrasador.

Fomos directamente para Unhais da Serra, a tal aldeia que afinal não ficava assim tão perto e lá demos o nosso espectáculo, durante o qual os espectadores barafustaram ruidosamente com frases do género “Estão outra vez a repetir a mesma merda” ou “Que c… de teatro é este?”. Foi uma barraca completa, apesar de não nos enganarmos e fazermos tudo direitinho!

A seguir actuou o grupo de danças que teve de dançar num ringue de patinagem, porque o palco onde nós actuamos era muito pequeno. Assim passamos a tarde à espera do jantar que nos ia ser servido lá em Unhais da Serra. Uma aldeia serrana, os sabores da natureza e nós a contar com os chouriços, as broas, os presuntos, aquele vinho da Cova da Beira…

Afinal, serviram-nos sandes de alface e tomate, água e vinho de garrafão, do mais reles que havia na mercearia. Foi uma grande desilusão e uma grande barrigada de fome.

Regressamos à Covilhã de orelha murcha, a tempo do grupo coral actuar à noite, mas ainda não sabíamos onde iríamos pernoitar. O calor continuava e nem com a noite refrescou.

No final do espectáculo, de regresso ao ponto combinado, junto do autocarro, ainda ninguém sabia onde se iria dormir, logo havendo alguns elementos que decidiram abalar para uma pensão próxima.

Por fim, já depois da meia-noite, apareceu um tipo da organização que guiou os homens até uma escola e as mulheres até um convento. Ahh… Pensavam que ficava tudo junto? Não, não, eram outros tempos e não havia essas confusões! Até havia, mas não se dava tanto nas vistas, percebem?

 

Ainda bem que estava calor, porque o alojamento resumia-se a uns colchões de espuma espalhados pelo chão nas salas de aula, às quais tinham tirado as mesas e as cadeiras. Acho que adormeci madrugada alta, pouco antes de nascer o sol, tendo passado o tempo a fazer todo o tipo de patifarias possíveis. Ainda recordo de ter ajudado a trazer um camarada (com colchão e tudo) para o jardim onde continuou a dormir placidamente, em cuecas.

De manhã cedo, andava o Vasco Moreira, que tinha idade para ser nosso pai, de clarinete em punho, passando pelas salas a acordar a malta, sendo recebido com toda a cerimónia, própria para estes casos “Ó Vasco, mete a gaita no cu”, vai acordar o c…” e outros mimos do género.

O meu pequeno-almoço foi num café perto da praça do município e ao qual voltei muitas vezes, mais tarde, no decurso da minha vida profissional, sempre que pelo sopé da serra pernoitava. Uma sande de queijo e um fino, uma imperial, com se diz para aqueles lados, para espanto do empregado, mais habituado a servir galões e torradas pela manhã.

Depois de todos reunidos, mais uma vez à volta do autocarro, lá arrancamos serra acima, o autocarro ronceiro que fumegava em cada curva, a dúvida residia em saber se conseguiria ultrapassar os desníveis do percurso. O local escolhido para o convívio dos Coros, já passadas as Penhas da Saúde, era aquele vale glaciar enorme, antes da subida para a Torre.

Aí assistimos a uma missa campal e conseguiu-se pôr todos os coros a cantar um hino conjunto. Não estou certo, mas seriam mais de mil e quinhentas pessoas.

No final havia o piquenique e o regresso a casa. Como no dia anterior tínhamos passado fome de cão, ansiávamos por esta refeição, até porque o ar da serra puxa pelo apetite. Não recordo o manjar, recordo a fome com que continuei e a “fita” que foi chegar ao camião onde estava o vinho.

Tudo em fila, de copo na mão, aguardando pacientemente a vez para abrir a cobiçada torneirinha. O Professor Laurentino Monteiro é que não foi de modas, ao chegar a sua vez, bebeu logo dois ou três copos seguidos, começando a ser imitado por muitos outros. Se a bicha andava devagar, passou a andar ainda mais devagar, para desespero dos sequiosos orfeonistas.

No regresso, paramos em Coimbra ou arredores, para comer qualquer coisa ,pois a larica era muita e a viagem iria durar mais algumas horas.

Recordo uma viagem animada, com muita música, muita cantoria e muita brincadeira, novos e velhos irmanados na amizade e no companheirismo.

 

Esta foi a minha primeira e ultima saída com o Orfeão, ainda demos mais um ou outro espectáculo pelos arredores, mas o Marinho acabou por admitir que a peça era “difícil”, face aos repetidos e pouco abonatórios comentários dos espectadores e à nossa recusa em continuar a fazer o papel de bombo da festa. Decidiu ensaiar outra peça, “O espantalho” que ainda era pior que a anterior e por isso deixei de ir aos ensaios, nunca mais retomando o contacto com o grupo de teatro.

Aos poucos, todos foram desistindo, o próprio Marinho também abandonou, assim se perdendo a oportunidade de motivar e de formar gente que pudesse encenar com regularidade peças interessantes. Por mim, peças do Brecht… não, obrigado!

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Brito Ribeiro às 16:21
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04
Nov 13

Naqueles tempos a vida era dura, tanto para os pescadores que por cá ficavam, como para os que se aventuravam na pesca do bacalhau. Partiam para a Terra Nova e Gronelândia no final do inverno, regressando a meados do Outono, dependia da sorte e da habilidade do capitão para encherem mais ou menos depressa os porões soturnos do navio.

O Manuel João, tal como outros jovens da sua idade, agarrou a oportunidade de largar a pesca artesanal onde se ganhava uma côdea, para “ir ao bacalhau”; alem disso, quem fizesse sete temporadas de bacalhau, livrava à tropa e à guerra em África.

Para quem sai a primeira vez da sua aldeia natal, tudo é uma aventura e sempre será melhor que receber umas míseras moedas no final de cada maré. Se o mar o permitir, porque de Inverno os frágeis barcos de boca aberta cavalgam rua acima entre o casario, para se furtarem às arremetidas do mar que fustiga o portinho, escavado entre as rochas agrestes do Moureiro e o Forte da Lagarteira..

Acabara de fazer a sua terceira viagem no “Rio Lima”, um barco lento, mas seguro, construído em 1952 pelos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. As condições de vida a bordo, apesar de duras, não se comparavam aos velhos lugres à vela, onde o seu pai e os irmãos mais velhos tinham pescado. Aí sim, era uma vida de escravidão e de perigo constante a pescar nos frágeis dóris, a viverem amontoados em cubículos como animais, a trabalhar perto de vinte horas por dia, sob as inclemências climatéricas do Atlântico Norte.

O “Rio Lima” tinha atracado a meio da manhã na doca de Viana do Castelo. Já lá estava o “Senhor dos Mareantes” e o “S. Ruy”, atracados desde a semana anterior. A roupa sebosa estava ensacada há muito, tal como as bugigangas compradas em St. Johns para a mãe e para as irmãs. Para o pai trazia, como de costume, pacotes de tabaco com filtro. O último banho a bordo libertou-o das escamas, disfarçou o odor a vísceras e a suor, mas não apagou as marcas do cansaço, as mãos gretadas e gastas, a barba hirsuta e o cabelo ensalitrado.

Após da manobra de atracar, cumpridas as formalidades, desembarcou pelo instável portaló ao encontro do abraço sentido dos familiares que o aguardavam no cais. Mais que um reencontro, era o renascer de uma coesão familiar, uma celebração da vida que recomeçava. Era dia de festa, a viagem para casa foi de carro de praça, um luxo reservado para bodas, emergências e para estas ocasiões.

Uma acha de pinheiro no fogão espevitou o fogo inundando a cozinha de aroma resinoso, que o refogado estava pronto de véspera e a cabidela surgiria enquanto contava as peripécias da viagem. Só as vitórias, os lances carregados de bacalhau, as partidas que pregaram aos colegas, as horas intermináveis na escala e salga. Os sustos, as lágrimas, as saudades e o medo não se apregoam, iriam sombrear os rostos felizes da família, que o escutam com um fervor quase religioso.

Depois do almoço saiu com rumo certo, o barbeiro que o expurgou das pilosidades acumuladas em sete meses de mar, vestígios sombrios que importa esquecer até à próxima viagem. No Poipa reencontrou companheiros, leu o jornal, soube as últimas do futebol e das coscuvilhices locais, antes da tesoura e da navalha cumprirem a sua missão. Quando olhou ao espelho não se reconheceu, custava-lhe acreditar que aquele rosto lhe pertencia, tão pálido e exangue, as orelhas penduradas na cabeça estreita, onde o nariz ganhava destaque, tal como um promontório avança mar a dentro.

Aviado do barbeiro, seguiu em direcção ao portinho, lugar que o viu nascer e crescer, onde se juntavam os amigos, onde se trocavam olhares e ditos com as raparigas, onde os homens enchiam as tabernas, nas quais ele já tinha entrada por direito próprio. A tarde correu rápida, talvez a conversa retida durante meses a tenha apreçado, a noite cobriu a terra e o mar, despediu-se de cada um para regressar ao lar aquecido pela chama mortiça do fogão, onde o caldo de hortaliça papujava lentamente.

Estavam à sua espera, pois era hábito daquela comunidade cear após as vésperas.

- Por onde andaste meu filho, que se faz tarde.

- Ó mãe, ainda ficou gente na Curraca e no Coxo da Faena.

- Mas o teu pai já está à espera para depois se deitar… Afinal onde é que andaste?

- Fui ao Poipa cortar o cabelo e a barba…

- Graças a Deus…

- … Depois fui para o portinho e estive à conversa com os amigos… o Daniel, o João, o Nel do Côto, o…

- Qual João?

- Da tia Ermelinda… e bebemos umas malgas de vinho novo.

- Vê lá, já não estás habituado e pode fazer-te mal.

- Não se apoquente, minha mãe. Pouco bebi e só demorei mais um bocadinho porque encontrei na esquina da pensão um companheiro de escola e fiquei à conversa. Depois ele seguiu para casa e eu pelo Sol Posto acima… Aqui me tem!

- Quem é esse companheiro de escola? O Camilo?

- Esse ainda não vi. Era o Berto da Nila…

A tigela caiu com fragor no chão, espalhando cacos e caldo em todas as direcções. A cor fugiu das fasces rosadas da Lurdes, petrificada de espanto e horror.

- Que foi, mãe? Parece que viu um lobisomem… Conhece o Berto da Nila… onde está o espanto?

- Tens a certeza, meu filho? – Balbucia a Lurdes, procurando o rosário no bolso do avental.

- Tenho, mãe! Então eu não conheço o Berto?! Olhe que fizemos juntos a quarta classe…

- Mas isso não é possível… a Nossa Senhora nos acuda…

- Então qual é o problema? Ele até estava tão bem disposto…

- Virgem Santíssima – gemeu a Lurdes com as lágrimas nos olhos – a sua alma não está tranquila.

- Que está aí a dizer, minha mãe! A sua alma?!...

- Sim, filho… O teu amigo… o Berto da Nila, esteve muito doente, chegaram a levá-lo para o Hospital de Viana, mas mandaram-no de volta para casa… o Berto… coitadinho, foi enterrado ontem…

publicado por Brito Ribeiro às 18:46
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26
Nov 11

Este conto foi incluido na Colectânea "Arte pela Escrita IV", edição da Mosaico das Palavras, em Outubro passado. Ficciona o naufrágio do cargueiro espanhol Cabo Blanco, que naufragou nas penedias de Montedor, acidente do qual ouvi vários relatos relacionados com a pilhagem da carga de barris de azeite e vinho entre outras mercadorias que transportava.

 

13 Julho 1936

Não se via um palmo à frente do nariz e a névoa pegajosa e húmida tudo tolhia. O som repetitivo da máquina, adensava a sensação de isolamento criado pelo nevoeiro. O dia ainda vinha longe, já o Comandante Piño desesperava com o compasso e régua sobre a carta de navegação. Não perdia de vista a agulha de marear e na ponte vários pares de olhos esforçavam-se a escrutinar as trevas nevoentas. À volta do “Cabo Blanco” o mar tinha adormecido e cardumes de sardinha fugiam para o profundo ao sentirem a vibração daquele corpo estranho em movimento.

A viagem tinha-se iniciado em Huelva, às portas do Mediterrâneo, com uma carga de produtos da terra, vinho, azeite, amêndoa, figo entre outras iguarias de que os Galegos de Vigo eram escassos, destino desta cabotagem. Na Andaluzia corriam rumores sobre a eminência de um golpe dos monárquicos, há até quem diga que o General Queipo de Llano já dera as suas ordens. Talvez a carga de mantimentos do “Cabo Blanco” fizesse parte do plano de reforçar o abastecimento da Falange na Galiza, disso saberiam os armadores, não o comandante e muito menos os marinheiros, que estão ali para labutar.

Dois dias de mares remansosos, sem vento, nem ondulação, que fazem feliz qualquer marinheiro. Poupa-se no carvão e avia-se a empreitada a contento do cliente. Madrugada dentro, tinham avistado os clarões do farol de Esposende, passando a distância segura dos mal-afamados “Cavalos de Fão”, dentes rochosos sempre à espreita de incautos, destino amaldiçoado por viúvas e órfãos. Nor-noroeste, sentenciou o Comandante Piño, bom conhecedor daquelas voltas, enquanto o piloto rodava o leme a bombordo.

A máquina resfolegava pela pressão do vapor que impulsionava as enormes bielas de metal polido, peganhenta de óleo que os maquinistas lhe vertiam.

O dia levantara-se cedo e triste, a bordo despertavam corpos e consciências toldadas pelo palhete andaluz que correra farto ao serão. O Comandante olhou pela milésima vez para a bússola incrustada na campânula de latão polido. A cada minuto, o silvo estridente da sirene fendia a cúpula de algodão que lhes servia de céu. Por mais atentos e avisados que estivessem os dois marinheiros de atalaia nas asas da ponte, nada assinalavam ao angustiado oficial, homem sabedor, porém nervoso com tanta responsabilidade.

No seu cubículo, o radiotelegrafista, de auscultadores nos ouvidos, perscrutava o éter, ora partilhando a apreensão de outros navios presos no nevoeiro, ora acompanhando as informações das estações navais. À sua frente, a caneca de café, lembrava-lhe uma noite de espertina.

Entre dois silvos da sirene ouviu-se um ligeiro rocegar, como alguém que esgadunha ao longe. O silêncio regressou, apenas o tempo suficiente para todos se perguntarem sobre a origem de tão estranho ruído. O ribombar seguinte tirou-os de dúvidas e à vibração habitual provocada pela máquina, sobrepôs-se o tremor da estrutura metálica em luta contra a áspera penedia.

Após os primeiros momentos de estupor, correrias cruzaram o convés, semblantes de pânico, gentes aflitas emergentes do ventre metálico rasgado. A máquina deu à ré, demasiado tarde para esta manobra. Do pouco que se podia vislumbrar, percebia-se que tinham entrado por um afloramento rochoso, talvez a norte de Viana da Foz do Lima, agora conhecida pelo Castelo que lhe guarda o casario.

O pedido de socorro foi enviado sem demora e das estações costeiras de Lisboa e de Leixões foi acusada a recepção e prometido auxílio. Vários navios que se encontravam próximos responderam ao chamamento e pelo meio da manhã, quando o nevoeiro se retirou e o sol brilhou, com a posição obtida pelo sextante do Comandante Piño, reconheceram na velha e sebosa carta náutica, a costa de Montedor, onde se destacava a torre quadrada do farol agora apagado. A colina verdejante cortada verticalmente pelo mar observava-os sobranceira e os moinhos rodavam as pás preguiçosas. Na planície, camponeses sachavam o milho que lhes fornecia pão e alimentava o gado nos rigores do inverno.

Os sete passageiros desembarcaram a salvo pelo cabo lançado a terra e a maior parte da tripulação retirou-se do navio que abrira água nos porões da proa. Para a operação de desencalhe, iniciada nessa tarde, bastava a presença dos maquinistas e de mais alguns marinheiros para a manobra dos cabos de reboque. Trabalho vão, que nem o mar estanhado auxiliava. Dos buracos do casco saiam, ao sabor da corrente, os barris de vinho e azeite da Andaluzia, que mãos ávidas, a bordo das masseiras da Praia de Âncora e dos pesqueiros de Viana, retiravam das águas, antes que se escapassem para a praia, onde a chusma de camponeses se metia à rebentação para resgatar tanta fartura.

Não tardou a Guarda-fiscal querer arrecadar o que o mar dava e o engenho do povo subtraía. Negócios se fizeram entre pedras e dunas, barris e caixas eram carregados, o dinheiro mudava de mãos sumindo-se logo nos bolsos negros, enquanto o “Cabo Blanco“ afundava lentamente a popa inundada. “Dali já não sai”, diz quem conhece bem os picos fortes e aguçados das rochas do Montedor, “com a graça de Deus, não morreu ninguém” responde quem está habituado às tragédias que o mar provoca.

 

publicado por Brito Ribeiro às 18:29
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30
Jul 11

Desta vez o juiz assinou o mandato para análise dos telefonemas, que foi imediatamente enviado à Vodafone, com uma nota de “muito urgente”. Autorizou a peritagem ao BMW do Dr. Lacerda, com muita relutância e apenas depois de lhe ser assegurado que estava em causa uma questão crucial para a investigação.

O banqueiro ficou escandalizado quando lhe entregaram o mandato que autorizava a perícia à sua viatura. Ligou para o advogado que o aconselhou a colaborar e a retirar-se para o recato da sua moradia, antes que os jornalistas farejassem o acontecimento.

Uma aturada vistoria à viatura permitiu encontrar vestígios de sémen nos tapetes traseiros, alguns cabelos e vários conjuntos de impressões que se provou pertencerem ao jovem assassinado. No tapete do lugar do condutor foram encontrados uns fragmentos minúsculos de saibro idêntico ao do Jardim de Arca d`Água.

Face a este conjunto de indícios, o insigne banqueiro foi detido para interrogatório e quando saiu cinco horas depois, já tinha sido constituído arguido, com termo de identidade e residência como medida de coacção. Durante o interrogatório manteve uma postura calma e respondeu com notória poupança de palavras a tudo o que o juiz lhe perguntou.

Sustentou sempre que não conhecia o rapaz, negou ter estado nos últimos vinte anos no jardim de Arca d’Água e negou ter disparado a pistola assassina. Declarou ter estado em casa toda a noite, não ter saído e ter adormecido perto da uma da manhã, o que foi corroborado pela esposa que dormia no quarto ao lado e que o ouviu ressonar regularmente.

O meio da alta finança acordou abalado com o escândalo provocado por um dos seus pares mais conceituado. As acções do Banco de Investimento desceram seis pontos, alguns clientes importantes encerraram as suas contas, o Conselho de Administração reuniu de emergência para analisar a crise provocada pelo escândalo e pela demissão pedida pelo seu presidente. Telejornais abriram, com directos da tranquila avenida onde o arguido residia e onde se supunha estar refugiado.

 

- Ó pá, é demasiado simples. Há muito que já deixei de acreditar em tudo o que me põe em frente do nariz… E esta merda cheira mal de cada vez que lhe tocamos. – dizia o Cabral enquanto rolava um palito entre os dentes.

- Isso é verdade, mas os indícios são muito fortes e o velho não tem um álibi em condições. Tanto podia estar a dormir como a enrabar algum puto – concorda o Ramos, recostado na cadeira.

- Ou a ser enrabado… - resmunga o Cabral.

- Fiquei com a impressão que o Dr. Bacelar não disse tudo durante o interrogatório e o juiz também ficou com a mesma impressão. Aquela capa de indiferença está a camuflar algo mais profundo. Há várias hipóteses. Pode ter sido ele a apagar o miúdo ou está a proteger alguém. Também pode estar a ser tramado…

- Por quem, carago? – pergunta o Ramos.

- Por algum filho da puta do banco, que o quer foder! – explica o Cabral com a habitual profusão de vocabulário vernáculo.

- Não pode ser. Estás a esquecer-te que a arma do crime estava na gaveta fechada à chave no quarto dele e ao BMW só tem acesso o motorista. A propósito algum de vocês interrogou o segurança sobre esse aspecto.

- Falei eu com ele e confirmou que o BMW ficou estacionado na rua em frente à casa – diz o Cabral.

- Mas porque é que não o recolheram na garagem?

- Porque esteve a fazer revisão e só à noite é que um mecânico o veio trazer. Já não é a primeira vez que assim acontece e é habitual deixá-lo estacionado em frente à casa e meter as chaves na caixa do correio.

- Detesto estas coisas da alta sociedade. Nunca são o que parecem…

- Tirando o dinheiro, ainda são mais fodidos que nós, os tesos! – sentencia o Cabral.

O telemóvel do inspector Maurício tocou, era o Dr. Lacerda a dizer-lhe que tinha algo a comunicar e pedia-lhe que passasse por sua casa a qualquer hora.

- Fala-se no diabo e ele aparece. Bem, vou lá ver o que ele quer, mas palpita-me que vai começar a levantar a tampa – diz o Maurício, espreguiçando-se.

 

- Eu conhecia o miúdo. Lamento ter dito que não o conhecia mas estava assustado e… hum… segui o conselho do meu advogado. Ele nem sonha que estou a ter esta conversa consigo.

- Quero informá-lo que tudo o que me transmitir constará dos autos do processo…

- Eu sei, mas não posso deixar que este crime horroroso fique impune e eu passe por criminoso. Como lhe dizia, eu conheço… melhor, conhecia o miúdo. Soube da existência dele há três meses por um conjunto de circunstâncias desagradáveis, mas…

- Desculpe interromper, mas se quer informar-me de todos os factos que dispõe, tem de deixar-se de rodeios e ir directamente aos factos.

- Tem razão. É um velho hábito do meu meio. Descobri que o Tomé era meu neto. Quando ainda era solteiro, na casa de meus pais tive um… tive uma… uma relação com uma empregada. Ela ficou grávida e foi para a terra, algures no norte e a vida continuou. A minha mãe foi muito generosa com a rapariga, ela ficou bem, tanto quanto sei e eu fui enviado para Londres e lá fiquei durante um par de anos. Quando regressei casei com uma senhora que faleceu pouco depois e uni-me em segundas núpcias com a minha actual esposa, da qual tenho três filhos. A nossa antiga empregada teve uma filha e nunca lhe disse quem era o pai, tinha sido o acordo feito pela minha mãe. A criança cresceu na aldeia, fez-se mulher, sei agora que se chamava Aurora, veio para o Porto, casou com um desgraçado qualquer e andou a prostituir-se por aí, até que a mataram há uns meses. É capaz de se lembrar do caso inspector…

- Sim, Aurora… recordo uma mulher estrangulada na Via Norte. Nunca se descobriu quem foi, provavelmente um cliente…

- Talvez sim, talvez não… O certo é que era minha filha e quando ela faleceu o Tomé foi informado, trabalhava numa fábrica de móveis. No funeral parece que encontrou um tio, melhor, um tio-avô, irmão da nossa antiga empregada, que lhe contou a história da família, com nomes e tudo. Um dia o rapaz apareceu-me aqui à porta, o segurança correu com ele, mas voltou e insistiu nos dias seguintes até que disse que era meu neto. O segurança informou-me e imagine como eu fiquei ao ouvir da sua boca coisas que eu pensava já ter esquecido. Dei-lhe algum dinheiro e pedi algum tempo para reflectir. Voltou mais duas vezes e da última contou-me algo arrepiante…

- Algo relacionado com a prostituição masculina? – perguntou o inspector Maurício.

- Sim. Ele tinha-se iniciado na prostituição muito novo quando ainda estava no reformatório. Um dos seus clientes habituais… desculpe, nem lhe ofereci uma bebida.

- Não, obrigado. Continue…

- Mas eu preciso de uma bebida… forte.

Serviu-se de uma garrafa de cristal contendo um líquido âmbar, deixou verter longamente no copo e emborcou metade da porção de um trago. Via-se pela contracção do rosto que não estava habituado a beber dessa forma, mas as circunstâncias eram excepcionais.

- Bem… Dizia eu, que me contou que estava no negócio da prostituição masculina e que tinha um cliente com um carro como o meu e parecido comigo a quem ele roubou uma pasta com documentos. Levou para casa e viu que aparecia o meu nome em vários papeis… Sabe o que isto quer dizer?

- Que pediu dinheiro pelos papéis – conclui o inspector Maurício.

- Não, o miúdo nunca tentou fazer chantagem. Eu acho que ele queria apenas um pouco de atenção, se calhar uma família. Aquilo que ele nunca teve.

- Então quem é o dono do outro carro, o tal que era cliente?

- É o meu filho mais velho, que também pertence ao conselho de administração do banco. Todos os administradores têm viaturas de serviço iguais. O carro dele é exactamente igual ao meu, só muda a matrícula. Foi um choque muito grande para mim saber que frequentava os meios da prostituição masculina, a prostituição infantil. Muito duro, inspector, muito duro para um pai! Mas o pior ainda estava para vir, pois eu confrontei-o com os factos, ele negou sempre e dois dias depois o rapaz… o meu neto estava morto e eu suspeito de homicídio e de práticas… práticas nojentas. Usou a minha arma e o meu automóvel para me incriminar, para afastar-me do banco e eliminar um herdeiro inesperado, pois eu comuniquei-lhe a intenção de tomar conta do rapaz e dar-lhe uma educação adequada, se ainda fosse a tempo… A minha vida está arruinada, mas isso pouco me importa, nos dois últimos dias passei a ver vida com outros olhos.

- Dr. Lacerda tenho que proceder à detenção do seu filho imediatamente e solicitar-lhe que me acompanhe para registar as suas declarações.

- Sim, sim, mas mais logo inspector. Peço-lhe apenas duas horas, talvez três horas… O meu filho deve estar a chegar e quero ter uma conversa tranquila com ele. Depois pode levá-lo preso, até me pode levar a mim.

- Muito bem senhor doutor, vou manter esta casa sob vigilância e logo que termine a conferência com o seu filho peço-lhe que me telefone para proceder à detenção com a maior discrição possível.

 

Às 19,45 o segurança da propriedade ouviu vários estampidos provenientes do escritório e face à ausência de resposta do interior, arrombou a porta deparando com os cadáveres do pai e do filho. No chão, ao lado do Dr. Lacerda, estava uma pistola Browning 6,35 ainda quente.

 Fim

 

publicado por Brito Ribeiro às 15:39
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24
Jul 11

O inspector Maurício desligou o telemóvel, recostou-se na cadeira, tamborilou no tampo do portátil fechado e procurou ordenar os pensamentos.

Aquele homicídio estava a dar-lhe água pela barba e ainda por cima não podia trabalhar à vontade, pois estava envolvida gente da alta sociedade, tipos com ligações às mais altas esferas do poder político e financeiro. Tinha de os tratar com toda a delicadeza e quase subserviência, o que o deixava hesitante e pouco seguro.

O cadáver tinha sido encontrado no Jardim de Arca d`Água, um jovem assassinado a tiro, com marcas da entrada dos projécteis nas costas. Segundo apuraram no local, rapidamente vedado aos mirones, o rapaz devia ter sido alvejado quando fugia de alguém, que após a queda do alvo, voltou a disparar à queima-roupa mais duas vezes. Estes dois ultimos projécteis, atravessaram-lhe o dorso e enterraram-se alguns centímetros no saibro da álea onde o cadáver foi encontrado.

Ninguém ouvira os tiros e o cadáver tinha sido identificado pelas impressões digitais como Tomé Alves Rodrigues, dezassete anos, um longo curriculum de pequenos delitos desde os nove anos, idade com que saiu de casa, sufocado com a indiferença da mãe, que se prostituía no Bonjardim e do pai, que se embebedava onde calhava. Internado na Oficina de S. José, fugiu diversas vezes, mas deixava-se apanhar sempre, como que de um jogo se tratasse. Pelo menos ali não passava fome.

Aos dezasseis anos saiu do Lar para ir trabalhar numa fábrica em Paços de Ferreira e perdia-se a pista durante longos meses.

Na zona de Arca d`Água ninguém o conhecia, mas acabaram por descobrir, através de um antigo colega da Oficina, que nas últimas semanas, o Tomé tinha dormido numa residencial manhosa, para os lados da Areosa.

A surpresa instalou-se na cara dos agentes da Judiciária que procediam à recolha de indícios no quarto da residencial, ao depararem com alguns milhares de euros em notas dentro de uma mochila e uma pasta com documentos do Dr. João Baltar Lacerda, presidente do Conselho de Administração do Banco de Investimento, figura muito conhecida do jet-set portuense.

Quando confrontado com o achado, o Dr. Lacerda mostrou-se reservadamente indiferente, dizendo apenas que eram papeis sem importância, que provavelmente qualquer dos seus colaboradores a tinha perdido, não fazendo ideia de quem seria o dinheiro encontrado.

O inspector Maurício registou uma brevíssima perturbação do banqueiro, quando o informou sobre o destino trágico do rapaz, que possuía os documentos e o dinheiro.

Quando solicitou ao juiz um mandato judicial para investigar o telefone do banqueiro, deparou com uma negativa peremptória e quase foi corrido do gabinete do magistrado, que, certamente, tinha na melhor conta a figura do Dr. Lacerda.

Estava atado de pés e mãos, restava-lhe investigar os últimos dias do rapaz. Conseguiu saber que o Tomé se tinha despedido há três meses e que uma ou duas vezes foi visto entrar para um enorme BMW preto.

O antigo colega que tinha estado com ele nas Oficinas de S. José, acabou por dizer que ele tinha “umas cenas maradas com gajos de massa que gostam de putos”. Quando ligou para o Lopes, um inspector pouco mais velho que ele e que era sistematicamente destacado para casos que envolviam pedofilia, o semblante carregou-se pois o nome do banqueiro nunca tinha sido associado a tais práticas.

Deixou-se ficar recostado na cadeira a pensar qual seria o próximo passo a dar. Tinha a convicção de que se não avançasse depressa com algum facto novo, o processo seria ultrapassado por outro e mais tarde ou mais cedo seria arquivado, ficando mais um caso por resolver.

Do laboratório tinham-lhe enviado um e-mail informando que a arma do crime era um revolver de calibre trinta e dois, o que pouco ajudava, pois há milhares de armas deste calibre espalhadas por todo o lado. Ligou para a central do departamento e pediu a um estagiário que verificasse se o Dr. Lacerda tinha alguma arma registada em seu nome.

Estava a almoçar no restaurante habitual, perto da directoria, quando o estagiário lhe confirmou por telefone que o Dr. Baltar Lacerda tinha registado em seu nome várias armas, entre as quais, um revolver de calibre 32.

De regresso ao edifício da Judiciária ligou ao principal suspeito do crime que estava a investigar.

- Sabemos que o senhor possui um revolver calibre 32 e gostaríamos de o ver.

- O crime foi cometido com uma arma desse tipo? – perguntou o Dr. Lacerda.

- É provável. Quando posso ter acesso à arma?

- Daqui a meia hora. Estou a sair de um almoço e passo por casa. Pode mandar alguém ir lá recolhê-la.

- Obrigado, irei eu próprio.

 

Esperou à porta da magnífica propriedade do Dr. Lacerda, na Maia. Pouco depois chegou o reluzente BMW conduzido por um motorista. O banqueiro apeou-se e fez um sinal ao Inspector Maurício para o seguir até casa, uma discreta mansão, escondida entre pinheiros mansos e longos relvados. Dispensou os cuidados de uma criada que correu a recebê-los, subiram a escadaria curva e entraram no seu quarto de dormir, certamente maior que muitos apartamentos médios. Abriu uma das gavetas, retirou um estojo de couro que entregou ao Inspector.

- Aqui tem o revólver. Tenho também ali uma pistola Browning de calibre 6.35. Não sei se também quer ver…

- Não, apenas preciso dos documentos desta arma, se os tiver aí.

- Com certeza. Eu tenho estas armas e nunca as usei fora de casa. São mais como… como tranquilizantes de consciência, do que uma protecção efectiva. Aliás, o senhor sabe que nós temos segurança privada na propriedade.

- Sim, sim. Já verificamos.

- Vou levar esta arma ao laboratório para ser analisada.

Ao final da tarde já lhe davam o relatório preliminar, que confirmava ser aquela a arma do crime. No tambor nem sequer tinham sido substituídos os cartuchos disparados e a comparação das estrias revelou-se positiva. A arma tinha sido recentemente disparada, não tinha sido limpa e as únicas impressões digitais pertenciam ao seu proprietário, embora houvessem vestígios de ter sido manuseada com luvas de látex, provavelmente quando foi disparada pela última vez.

O técnico prometeu enviar-lhe o relatório por e-mail, ligou para o Lopes a saber se tinha descoberto alguma coisa nos meios da prostituição masculina ou nos meios ainda mais restritos da pedofilia.

Apenas tinha confirmado a existência de um BMW de alta gama, vidros escuros do qual ninguém parecia conhecer o condutor. Circulava lentamente, às vezes parava, baixava o vidro, algum dos rapazes aproximava-se, o condutor permanecia na sombra. Conversas escassas se geravam, prazeres se combinavam, as notas mudavam de mão, nunca faltavam.

- Bolas! – resmunga o Inspector desmoralizado com a insuficiência das informações dadas pelo colega.

Chegou a casa poucos minutos depois da Rosa, enfermeira no S. João, com quem vivia há três anos. Jantaram em silêncio, sentaram-se a ver um filme antigo, beberam cerveja, fizeram amor no chão da sala, deitaram-se já depois da meia-noite.

Antes de adormecer ainda pensou que no dia seguinte voltaria ao gabinete do juiz com o relatório do laboratório, para lhe solicitar novamente o mandato, que lhe permitiria analisar as chamadas telefónicas feitas e recebidas pelo principal suspeito, assim como examinar pericialmente o vistoso BMW, em busca de algo que provasse a presença do Tomé na viatura.

Na manhã seguinte foi chamado ao gabinete do Inspector Chefe Peres, que sem delongas lhe apontou para a primeira página do “24ª Hora”, um jornal sensacionalista que parecia farejar todos os assuntos que exalam mau cheiro. “Banqueiro suspeito de homicídio de um jovem prostituto” e seguia-se uma foto do visado com ar austero, a sair da sede do banco.

- Ó Maurício, como é que estes filhos da puta tiveram acesso a esta informação? Que grande bronca…

- Isso queria eu saber. A investigação tem sido feita no máximo sigilo, conforme nos indicou e que eu saiba, do nosso lado não pode ter havido fuga. Ainda por cima só estou eu, o Ramos e o Cabral a trabalhar nisso e apenas fiz meia dúzia de perguntas ao Lopes sobre os meandros da pedofilia, mais nada.

- Bem, de algum lado saiu, que esses cabrões não iam adivinhar sozinhos. Diga-me lá o que apuraram.

(continua)

 

publicado por Brito Ribeiro às 16:48
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10
Abr 11

Este conto foi ficcionado com base em acontecimentos reais. É também uma singela homenagem a todos os pescadores que ao longo de gerações procuram o sustento de forma tão dura e perigosa. Simultaneamente,  é uma forma de recordar aqueles amigos que nos deixaram há tão pouco tempo.

 

 

Mar de Âncora, 14 de Fevereiro de 1951

 

O relógio da sala deu as quatro horas. A cama rangeu sob o peso do Chico que se levantou às escuras. Ao seu lado o irmão ainda dormia, tinha sorte, iria alar as redes já com o dia, podia dormir descansado mais um par de horas.

Vestiu-se na cozinha à luz do coto da vela, engoliu a broa dura com uns goles de cevada que a mãe deixara na cafeteira, sobre o fogão ainda morno.

No Portinho, as gamelas deslizavam sobre os rolos de pinho em direcção ao mar que a brisa encapelava de leve.

- Ao menos não vamos precisar dos remos – diz o Tone Machina, que aos treze anos, tal como o Chico da Caganta, já labutavam no mar o sustento escasso, que o mar consentia dar.

Cedo içaram a vela que empurrou o “Sempre em Frente”, velho barco tipo poveiro, em direcção aos mares de Afife. À sua frente navegava o “Pesse Bucha” que ia procurar sustento para os mesmos lados.

A verga da vela rangia sob o esforço, o vento era mais que em terra, assobiava nos cabos retesados. Ao leme, o César do Baba procurava aproveitar o máximo da força, oferecendo pano às rajadas consecutivas. Cada vez que a direcção do vento mudava, o mestre compensava com um golpe de leme que fazia o barco adornar. A água corria então veloz a escassos dedos da borda, um ou outro salpico invadia o interior já molhado do pequeno barco de pesca.

De súbito, uma rajada de través pôs a tripulação alerta.

- Arreai a vela – grita o mestre vendo o barco inclinar-se perigosamente.

Os homens soltaram a adriça, mas a verga não desceu. Uma volta no cabo de linho duro, não passou no moitão. Desesperadamente puxaram novamente pelo cabo da adriça e soltaram-no de imediato, na esperança de se desfazer a volta do cabo, uma “cocha” na linguagem destes pescadores.

O cabo molhado e rijo voltou a prender e a vela não desceu como todos ansiavam. Com a inclinação a vela tocou na água, o leme soltou-se, o barco rodopiou e tombou de lado.

Os homens caíram ao mar esbracejando em pânico. O nome do Senhor dos Aflitos passou de boca em boca, enquanto se procuravam desembaraçar da roupa grossa que os puxava para o fundo.

Uns agarrados ao mastro tombado, outros seguros às tábuas alcatroadas do barco, gritaram até ficarem roucos, mas a embarcação que os precedia continuou a sua marcha, ignorante da tragédia que se desenrolava na sua esteira.

O tempo passava, os homens na água subiam e desciam ao sabor da ondulação cavada. A terra estava longe e inalcançável, devido ao vento que se fazia e os atirava para sul. Por perto não se vislumbrava qualquer outra embarcação.

Ao fim de uma hora estavam gelados, a água em Fevereiro está sempre fria e o Fininho, doente dos pulmões, desesperado com a ausência de socorro, conseguiu abrir a navalha e dizer ”prefiro matar-me a esperar a morte”, no que foi prontamente contrariado pelos seus companheiros que o demoveram de tão dramática atitude.

- Vamos rapaz, aguenta-te, que os barcos da pescada hão-de estar a passar e algum nos vai socorrer – diz o mestre Cesar do Baba, mais para incutir animo nos seus homens, que por convicção.

- Estou a ver uma vela – diz o Chico que se tinha sentado sobre o mastro que acompanhava a ondulação das ondas.

- Gritai meus filhos, gritai… - diz o mestre.

Ao longe, no “Estrela d`Âncora”  do Tio Morranga, navegava-se sem pressa, as redes estavam perto, o vento estava manhoso e não havia que fiar. O Tó Malhão levantou-se, inclinou a cabeça para um e outro lado, subiu para o banco na tentativa de olhar mais longe.

- Desce daí rapaz, não vês que é perigoso da maneira que está o vento – diz-lhe o pai e mestre da embarcação.

- Estou a ouviu gritos – justifica o Tó.

- Não ouvi nada.

- Eu também não.

- Calai-vos e escutai. Vem daquele lado.

- Tio Morranga, eu também ouvi agora qualquer coisa – diz o Luís da Laparda

- Eu tambem já ouvi! Caça-me a escota que vamos virar para oeste, rápido, é alguém que está naufragado aí fora. Deus queira que cheguemos a tempo…

O Tó continuava à proa, ora debruçado sobre o testeiro, ora subindo ao banco mais próximo até distinguir a mancha escura do barco poveiro voltado.

A vela foi arreada, os remos empunhados por mãos rudes, dedos fortes que se fecharam sobre as empunhaduras com a força do desespero. Na água, a tripulação do barco do Baba dava graças às divindades evocadas naquela hora de aflição. O Chico e o Tone da Justa seguravam o Fininho, muito debilitado devido ao frio que a doença não repelia.

Depois de todos a salvo, passaram um cabo ao barco naufragado, fundearam-no para mais tarde o recuperarem. Chegaram rapidamente a terra e cada um tratou de ir mudar de roupa e tomar algo quente que afastasse o gelo que sentiam na carne e na alma. 

Ao fim da tarde, o “Sempre em Frente” entrava no portinho a reboque de dois outros barcos que o tinham ido resgatar.

Dois dias depois já pescava novamente nos mares de Afife.    

publicado por Brito Ribeiro às 12:06
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01
Nov 10

Este conto constitui a minha participação na colectânea de prosa e poesia "A Arte pela Escrita III" da editora Mosaico da Palavra.

 

Senti-me observado, incómodo, não estava mais ninguém por perto, mas aquele olhar penetrante, atento, fixo, de uma imobilidade perturbadora, transformou-me numa espécie minúscula, quase microscópica, escalpelizada sob o vidro da lupa, qual verme tentando escapar, ondulante, que é o único andar que conhece. Levantei-me, lentamente, muito lentamente fui em sua direcção, mas não reagiu, Saramago diria que era um anjo, daqueles que não perdoam porque não é essa a sua função, este teria como missão observar-me, talvez fosse dos que castigam. Castigar? Porquê? Não será castigo demais as armas e os barões assinalados, apontados a dedo e filmados, dia após dia, tragédias contemporâneas do berço, da saia, da estrada, do crime sem castigo, que a justiça alem de cega, é surda e manca. Não será demais a contradição do homem, que cresce, aprende saberes que o envaidecem, terminando ele próprio como um destroço arrastado na grande vaga do tempo. Pelo canto do olho procurei o seu olhar, parece-me que se mexeu um pouco, talvez mais para norte, enfrentando a ventania de meia tarde. Agora que estava de perfil podia ver-lhe melhor a cabeça cinzenta e o olho negro atento aos meus movimentos, até aos meus pensamentos, se realmente for o tal anjo. Este deve ser dos que dão as novidades, que levam e trazem as boas novas, ainda à moda antiga, batendo as asas pelos céus, que no paraíso coisas modernas ficam à porta. Mas eu não sou carpinteiro, nem devoto de água benta, não tenho direito a novas por decreto celeste, muito menos por anjos de recado encomendado, Ele tem mais que fazer do que se preocupar com as minhas interrogações. Ao longe, ouvem-se os gritos e risos de quem se banha entre a espuma equilibrada na crista das ondas. As cabeças sobem e descem, desaparecem por instantes como que a purificarem-se das arrelias diárias aforradas nos invernos tristes, sombrios, das vidas sem interesse, sem viço e sem memória. Em volta, olhares ociosos procuram os seus, que a praia é grande e crianças são como areia a escorregar entre os dedos. Outros, transformam a vista no instrumento da cobiça, descarados, dissimuladas, pensamentos dissolutos, que nem o anjo descortina, que essa também não parece ser a sua especialidade. Para isso teria de chamar um de nível superior, um querubim ou se o caso for demasiado grave, um serafim. Agora não vale a pena, a tarde caminha para o crepúsculo, todos se secam, todos se vestem, a cobiça regressa à anterior modorra até ao novo dia, desculpem, não vale mesmo a pena incomodarem-se por isso, é normal e não chegariam todos os anjos do Paraíso para percorrerem as praias do litoral, a meterem juízo nas cabeças, pensamentos pios e castos. Alguns irão à missa das seis, nem se lembram do pecado, se é que isso ainda existe para tão pequena e banal distracção. Se existe não deve ser dos graves, de contrário Ele já se teria aborrecido com tamanha falta de vergonha e não deixaria o assunto nas mãos de um anjo menor, de cabeça cinzenta e olhos negros, que acomoda as asas brancas com um trejeito de ombros e me segue enquanto dou voltas pela sala. Vou à varanda, quero vê-lo de perto, falar-lhe. Talvez tenha alguma mensagem e esteja à minha espera, olá, disse eu, que não sei como cumprimentar um anjo, virou a majestosa cabeça bem de frente, baixou-a um nada, como a avaliar-me, tal como o alfaiate aprecia o freguês. O silêncio quebrado apenas pelos retardatários que na avenida rodeiam as tendas dos gelados, colares e fantasias que tornam mulheres formosas, não perturba o nosso frente a frente. Percebi que não me iria falar, não precisava e eu compreendi finalmente aquele olhar penetrante que me pedia ajuda. Sim, ajuda, era a mensagem daquele ser, agora estou convencido que é um anjo, não dos serafins, nem querubins, mas dos anjos da guarda que apesar do nome não andam armados, para isso temos os bandidos, uns com farda, outros nem isso. Aquecimento global, poluição das águas, desflorestação, derrame de petróleo, ocupação desregrada e corrupta dos solos, que Terra iremos deixar aos nossos filhos? E que filhos estás tu a preparar para esta Terra, diz-me o anjo que não fala, mas eu entendo, já te esqueceste que foram os filhos e os netos dos teus antepassados que nos estão a levar à ruína? Tens razão, e que faz o teu Senhor, não pode lançar um vento que corra com todos os incompetentes, corruptos e demais auxiliares dessa grande confraria. Alea iacta est, que é como quem diz, a sorte está lançada, respondeu-me o anjo, deixando que o vento do crepúsculo lhe acariciasse a alva pelagem. Baixou a cabeça, talvez um saudar, até qualquer dia, abriu as asas e juntou-se ao bando de gaivotas que regressavam à penedia.

publicado por Brito Ribeiro às 16:41
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14
Nov 09

Este conto baseia-se no naufrágio do "Janko" ,um navio tanque que se partiu na costa da Galiza, naufragando uma das partes na costa portuguesa, perto da Capela de Santo Izidoro, Freguesia de Moledo.
 
O vento ciclónico soprava entre os ramos agitados dos pinheiros. A caruma voava e as pinhas desprendiam-se precoces. Pássaros sarapantados, escondiam-se algures entre a folhagem de arbustos rasteiros. Mais um galho quebrado abate-se na areia que lhe vai servir de cama. O som de madeira rachada faz-se ouvir, logo abafado pelo supremo uivo do ar em correria desesperada de norte para sul.

Na povoação as crianças agarradas às saias das mães tremelicam de medo e frio, que o Fevereiro trás o diabo nele. Temporal assim não lembrava aos mais velhos, já vão mais de duas semanas sem tréguas nem acalmia. Quantas telhas voaram dos frágeis casebres junto à praia. Até a chaminé do Tio Caçola se abateu rendida ao sopro de Éolo. Vidas miseráveis, ainda mais pobres quando o tempo amainar. Só pode ser obra do Demónio… ou do Senhor que está zangado. Por via das dúvidas acende-se o círio no oratório da sala e faz-se novena devota com esmola e promessa.

Os homens na loja da Curraca olham para o mar e não reconhecem as águas que lhes dão peixe, que lhes dão de comer. Vagas altas como castelos, coroadas de espuma suja que entram terra dentro para engolir os seus pobres haveres e tomar conta do que um dia foi seu. Mais logo, pela praia mar, vai molhar-lhes os pés, são marés mortas, se fosse esto de lua nova arrebentava com portas e postigos.

Entre duas tigelas de carrascão e o baralho sebento, discute-se o temporal que vem de noroeste, dos ingleses ou dos Açores, dizem aqueles que já foram ao bacalhau. Um vulto tapa por momentos a abertura da única porta da loja. A penumbra do interior torna-se tão carregada que nem a chama do candeeiro de petróleo sobre o pipo do vinho branco consegue penetrar. Entra sacudindo a samarra, limpa o rosto molhado à manga, resmunga uma praga que só ele percebe.

- Vem um navio à deriva – exclama com voz rouca perante a turba que não se contem com perguntas – para os lados da Meia Légua. Está partido em dois… vem dos galegos e vai encalhar…

Como impelidos por uma força maior, todos se acotovelaram para cruzar a pequena porta de duas folhas. Das toscas mesas não se moveram dois velhos que mal se tinham nas pernas e a dona da loja, ao balcão a aviar fiados que hão-de de ser saldados com o apuro das primeiras fainas. O mensageiro deixou-se cair sobre um dos bancos corridos e engoliu sôfrego o tinto que manchava a tigela esmoucada.

- Ainda tenho tempo, que o vapor está longe e vem a direito das Paredes Altas – justifica-se – vou a casa buscar uma corda que há-de dar jeito mais logo.

Os velhos acenaram com a cabeça, compreendida a intenção de saquear os despojos arrojados à penedia, se a Guarda-fiscal não aparecesse primeiro, corvos de uma figa. Ladrões que queriam tudo para eles. Chegavam à terra pobres como Jó, com uma mão atrás outra à frente e em duas penadas já construíam casa e compravam leiras de cultivo.

A porta da loja ainda batia impaciente agitando rolos de fumo que se desfaziam no ar frio do exterior. O tropel dos tamancos esvaía-se ao longe, o silvar do vento e o rezingar do mar voltaram a encher a taberna.

O navio tanque que se partira a noroeste da Corunha trepou preguiçoso pelos rochedos e deixou-se finalmente vistoriar pelos miseráveis que nada tinham e que tudo lhes servia. Um pedaço de ferro, uma camisa, um cabo, um saco de batatas, uma navalha; a tinta que enchia os porões libertava um fedor atordoante, mas já não havia nas redondezas nenhum balde, púcaro ou gamela que sobrasse. Tudo servia para arrecadar o precioso líquido que na primavera iria refrescar as paredes e os muros escurecidos do musgo invernal.

Os da Guarda Fiscal montaram vigia em terra durante dias, enquanto os homens acorriam ao salvado por o lado do mar, desembarcando das frágeis masseiras sempre que o mar lhes concedia uma calada. Uns ficavam aos remos a governar a embarcação, outros saltavam a penedia até às entranhas ferrugentas do velho “Janko” para lhe escoarem mais uns litros do precioso esmalte branco.

Da ociosidade da tasca já ninguém recordava, agora valia o negócio que gentes de Viana vinham fazer, a notícia correu célere, tal como no tempo do volfrâmio que ganhava quem mercava e pouco rendia a quem esgravatava. Negócio feito, tenda desfeita, a tempestade já lá vai, do vapor faz-se sucata, as dívidas estão saldadas, boa ajuda deu esta empreitada.

As redes da pescada estão prontas, os camaradas a postos, ultimo empurrão e a masseira flutua nas águas remansosas do portinho. Remos na mão, que vento só ao largo.

“Ala, ala, que temos de aproveitar a maré, o Senhor dos Aflitos vela por nós e as mulheres que ficaram hão-de dizer um Padre-Nosso por nós”.

 

 

publicado por Brito Ribeiro às 11:53
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