Ambiente, história, património, opinião, contos, pesca e humor

26
Mar 15

“Era o filho mais velho de quatro irmãos, o único rapaz. Manuel, como o meu pai, o meu avô, o meu bisavô... Treinado para ser médico. Porque o meu pai era médico e toda a família, inclusive do lado da minha mãe, também. Nasci em 47. Não havia televisão. Portugal era um país muito triste. O meu pai era esquerdista, a minha mãe católica e salazarista. A família do meu pai era republicana, a da minha mãe monárquica.

10983462_1710901495803358_3649713301917296085_o.jpEu era um miúdo que não tinha graça nenhuma. Passava a vida a ler. Li tudo. Tudo. Comecei muto novo. Adorava ir para Arouca, para casa dos meus avós. E, naquela altura, as férias eram muito grandes. Em Arouca não havia nada para fazer. Então, lia Aquilino Ribeiro e Camilo Castelo Branco. Em casa do meu pai lia Eça e Antero, na dos outros avós lia os românticos. Era gordo, não tinha jeito para desporto. Joguei hóquei no Vigorosa, mas fui sempre suplente. E suplente do guarda-redes. Pior não podia ser! Mas fui sempre esforçadíssimo, isso sim. E sempre tive muita dificuldade em perder, o que é uma estupidez para um tipo gordinho que não tinha qualquer jeito para aquilo. Tinha um tratamento diferente do que era dado às minhas irmãs. Em Arouca, o meu avô deixava-me sair para ir jogar futebol para o clube. Elas dizem-me ainda hoje que o melhor bife vinha sempre para mim. Não sei se era verdade, mas provavelmente sim. Nasci no dia de Nossa Sra. da Mó, 8 de Setembro, que é a grande festa de Arouca. Portanto, a minha avó achou que era um milagre. Há uma aura que se estabelece em relação a uma criança que não tinha ponta de graça. As minhas recordações dos meus bisavós nunca sei se são mesmo verdadeiras ou se foram reconstruídas a partir das fotografias. A fotografia e o cinema são umas armas fantásticas. As minhas memórias são muito reconstruídas. Vivi desde miúdo na rua Pedro Teixeira. Todos os médicos tinham vindo viver para perto do hospital de São João, só a nossa rua tinha oito ou nove. Neste sítio onde estamos, onde é agora o IPATIMUP, eram os lameiros da Asprela. A gente brincava ou aqui ou no jardim da Arca de Água. Era um Porto rural. A minha ideia de infância da cidade não tem nada a ver com um lugar cosmopolita. Ia ao cinema em frente ao Académico, em Júlio Dinis, ao Vale Formoso. O Porto era uma cidade de bairros. Fui sempre muito bom aluno. Era um marrão, mas adequado. Ajudava os meus amigos, porque tomava notas e depois passava a limpo. Portanto, as minhas sebentas foram sempre muito cobiçadas. Quer na escola, quer no liceu, quer, mais tarde, na faculdade. Eu topava os professores. Tinha boa memória, mas acima de tudo topava... Sempre achei graça a pessoas. Se tiver de identificar a característica que me distingue mais de uma certa geração próxima da minha é essa. Nunca gostei muito de coisas, sempre gostei muito de pessoas. Não acho graça a automóveis, nunca comprei roupa para mim. Uma vez estava em Londres e precisava de comprar uma camisola. Quando a senhora me perguntou o que queria nem sabia como me explicar. Nem linguagem para isso tenho. Fui para médico sobretudo por causa da pressão familiar. E depois, dentro da Medicina, quis sempre ser professor. Esta coisa que faço, de ser vagamente cientista, é para ser melhor professor. As minhas escolhas foram sempre muito racionais. Gostava de Medicina, de estudar doenças, mas tinha muita pena dos doentes. Emocionava-me. Por exemplo, os tipos que se queixavam de doenças psiquiátricas contavam histórias tão horripilantes que pensava: ‘Eh pá, se fosse eu estava pior...’. Empatizo sempre. E para um médico isso pode ser muito complicado. Portanto, encontrei esta solução da Anatomia Patológica. Sou útil, porque faço diagnóstico. Mas há aqui uma coisa de fuga ao risco. Se não tiver a certeza faço mais colorações, se não tiver a certeza com as colorações mando para segunda opinião. Sou muito atípico nisso. Toda a minha vida foi muito certinha. Ainda não tinha acabado o curso na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto quando fui trabalhar com o professor Serrão. Numa altura havia um congresso que tinha como tema o cancro da tiróide e ele disse-me para fazer a revisão dos casos. Gosto de saber as coisas com profundidade. Não sou nada superficial. Percebi que a partir do cancro da tiróide podia perceber muito de cancro em geral. Foi assim que comecei. Fazia autópsias e não tinha percebido que ia morrer. O que é uma burrice para quem faz autópsias. O meu pai morreu cedo, com 71 anos, de cancro do pulmão. Foi uma tragédia para mim. Adorava o meu pai. Percebi que as pessoas morriam aí. Mas, é engraçado, só quando a minha neta mais velha nasceu é que percebi que eu também ia morrer também. Isso deu-me uma ternura e quase uma doçura trágica. Agora, há dois ou três anos, percebi que me ia reformar. Tenho uma má relação com o deixar de trabalhar, porque não sei fazer mais nada. Tenho um cagaço de deixar de trabalhar... No limite por orgulho, por não querer perder. Continuo a lidar muito mal com a derrota. Pessoal ou não. O que está a acontecer no país, por exemplo, é uma tragédia do ponto de vista social. Irrita-me que aconteça. Por isso tenho tendência para lutar contra. Tenho muito optimismo — ou teimosia — na acção. No limite, a teimosia é a fuga da morte. Ou o medo de perder. O medo de perder para mim é deixar de trabalhar ou que o IPATIMUP deixe de ser um sucesso. Ou que a Universidade do Porto deixe de ser o que é. Não vivo com azedume, mas vivo com irritação. E dá-me sempre para responder fazendo. O que me torna — para a minha mulher, os meus filhos e os meus netos — super irritante. Tenho sempre mais coisas para fazer do que tempo. Essa falta de tempo é tenebrosa. E, nesta altura em que a reforma se aproxima, ainda mais. Para mim, deixar de trabalhar é muito mais grave do que morrer. Por isso, quando devia estar a desacelerar, estou a acelerar. Tenho de programar a reforma. Mas como?.. Ando aterrorizado. Se tiver de definir o meu estado actual seria: triste com o país e assustado com a ideia da reforma. Tenho, talvez, de me manter numa actividade próxima da ciência e do ensino. Estou a achar cada vez mais graça aos meus netos. Tenho orgulho neles. Pode ser que eles sejam uma solução. À segunda-feira juntamo-nos todos lá em casa e tem muita graça. Ajudar a formá-los, dar-lhes livros... isso é um desafio interessante. Mas estou a ter um envelhecimento mau. Em conclusão, fui um puto sem nenhuma graça e estou a ficar um velho muito irritante. O IPATIMUP é a menina dos meus olhos. Indiscutível. Mas por ser uma espécie de emanação da Universidade do Porto. A gente quando pensou o IPATIMUP fez uma espécie de universidade, com mais graça e menos chatices. Mas isto é universidade. Não tive nunca a sedução de fazer um laboratório. Ou uma empresa. O IPATIMUP é, antes de mais, um sítio onde fizemos gente melhor do que nós. Eu não sou um cientista, nunca podia ganhar um prémio Nobel. Tenho algumas descobertas razoáveis, mas não tenho nenhuma muito boa. Mas tenho alguns miúdos que começaram comigo que são do melhor que há. Não foi só por estarem aqui, mas foi também por isso. Estas instituições vivem de fazer pessoas. Se não percebermos isso em Portugal de uma vez cometemos um erro enorme. A gente só evolui se apostarmos em fazer gerações de pessoas melhores do que nós. Nós — São João, IPO, IPATIMUP — fizemos uma escola de cancro do estômago e da tiróide que é das melhores do mundo. Esta geração de hoje é muito diferente da minha. É uma geração indutiva, aprende por tentativa e erro. Muito epidérmica, muito pouco elaborada em termos de estrutura. Por exemplo, não conseguem contar uma história com princípio meio e fim. E estamos a falar de gente inteligentíssima. São pessoas muito simplificadas na expressão verbal. É uma coisa que me assusta. São muito bem educados. Mas por imaturidade. São mais formatados e previsíveis. Provavelmente fruto do ambiente familiar. Na minha cultura a mãe estava muito mais presente, dava-nos mais maturação afectiva. Estes miúdos não têm tempo. E acho que não têm entusiasmo, o que talvez seja fruto do estado do país. Nós tínhamos um futuro. Podia não ser risonho, mas era um futuro. Eu agora falo com os meus alunos e eles querem ser médicos. Ponto. Nós queríamos ser os melhores e ir para todo o lado. Agora, houve um problema, que é estupendo mas é um problema, chamado massificação. E nós lidamos mal com a massificação. Estou a falar do ensino, que é o meu mundo. Vivo pouco fora dele. Ao estrangeiro quase só vou para trabalhar. De resto prefiro ficar cá. Todos os fins de semana vou para Âncora, nas férias grandes vou para Arouca. Sempre. Adoro fazer férias para ler. Nunca pensei sair do Porto. Tive um convite de trabalho muito bom da Suíça, país sem mar. Tive outro muito bom da Noruega, onde há pouca luz. O meu primeiro problema é o afastamento dos meus pais, das minhas irmãs e dos meus amigos. Mas preciso também de mar, luz, sol. Depois, há uma coisa muito importante que existia em Portugal e não existia em mais lado nenhum, talvez com a excepção de Espanha. A oportunidade de fazer a diferença. Durante vinte anos, isto foi uma aventura. Tenho sempre muitas visitas de estrangeiros cá. E, há uns anos, o Porto não era uma cidade muito bonita para se mostrar. Levava-os à Foz e à Ribeira. E depois fugia para o Douro e Viana do Castelo. Agora não. O Porto está lindo. A minha relação com a cidade melhorou muito.”

Portugal, Porto, 24 de Março de 2015

Porto Canal - Manuel Roberto e Mariana Correia Pinto

publicado por Brito Ribeiro às 15:36
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