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Na raia do Alto-Minho e Trás-os-Montes manda a tradição que a ceia de Natal seja polvo cozido com batatas.

No Museu Memória e Fronteira, em Melgaço, os arquivos das apreensões da Guarda-fiscal não mentem. Nos tempos do contrabando com Espanha as autoridades confiscavam cobre, café e azeite, mas nos últimos dois meses do calendário a listagem destaca o polvo.

Avelino Fernandes, reformado da guarda-fiscal conta que em novembro e dezembro aumentava o contrabando de polvo. Eram 32 guardas e nessa altura reforçavam a vigilância, mas fechavam os olhos à passagem do repasto natalício.

Amadeu Pereira outro ex-contrabandista e depois guarda-fiscal, diz que usou muitos conhecimentos para apanhar criminosos, mas nunca na altura do polvo, pois era como ir a casa de alguém e levar-lhe a ceia de Natal.

Todos são unanimes ao lembrar a crueldade da PIDE, que queimava o polvo que era apanhado na fronteira. O objetivo político de Salazar era proteger a frota bacalhoeira.

António Domingues era apalpador na fronteira de S. Gregório, revistando quem passava pela alfândega, mas deixava passar o octópode. Tirá-lo ao contrabandista era roubar o natal a uma família.

Era das águas atlânticas da Galiza que chegava o repasto. Nos primeiros anos o polvo era seco e depois, com a difusão da rede de frio, chegava congelado.

Em Castro Laboreiro a tradição ainda é o que era. Atear o fogo aos toros de carvalho até chama fazer-se forte, pois a água não tardar muito a ferver. Num pote de ferro deitou-se a água, uma mão cheia de sal e uma moeda preta, para dar sorte.

Quando estiver a borbulhar agarra-se no polvo pela cabeça e mergulha-se cinco vezes na água, uma por cada chaga de Cristo. Depois é atirá-lo lá para dentro com uma cebola cortada ao meio. Vinte minutos o animal sozinho, outros tantos acompanhado de batatas descascadas e cortadas pela metade.

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O jantar de Natal ignora o bacalhau e dá a primazia ao polvo cozido. Servido com batatas e regado com um molho de azeite, alho, calda do polvo e pimentão picante.

Em toda a raia nortenha, do Minho a Trás-os-Montes, a história é a mesma. Come-se polvo cozido antes da Missa do Galo e deixa-se o que sobra toda a noite em cima da mesa, para que se volte ao repasto no almoço de 25 de dezembro. E o bacalhau, omnipresente durante o resto do ano, faz folga nas Festas.

Segundo Albertino Gonçalves, professor de Sociologia na Universidade do Minho e especialista em cultura luso-galaica há duas explicações para este microfenómeno natalício: a nobreza do alimento e a proximidade à fronteira, porque o polvo é um produto de alta qualidade e sempre esteve reservado para ocasiões especiais.

No final dos anos trinta, o Estado Novo quis ordenar o abastecimento alimentar do país para travar a fome. O polvo não entrava no menu do regime, nem era uma prioridade estratégica.

A proximidade da Galiza, coração mundial da pesca de polvo, fazia que ele estivesse presente no território há séculos e entrasse na dieta das gentes da fronteira muito antes do bacalhau.

O polvo assim, tornou-se um produto identitário da raia, imune às tentativas de reconversão que lhe tentaram fazer.

O bacalhau da consoada não é, em boa verdade, uma tradição assim tão antiga. No final dos anos trinta, depois da Guerra Civil Espanhola e de uma tremenda escassez de alimentos nos dois lados da fronteira, o Estado Novo quis ordenar o abastecimento alimentar do país para travar a fome.

Salazar definiu zonas e produtos: cereais no Alentejo, sardinha nos portos pesqueiros, hortícolas e frutícolas no Oeste. E investiu seriamente na frota bacalhoeira, capaz de trazer das águas frias do Norte um ingrediente barato, facilmente conservado a bordo e altamente duradouro.

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Mas se o prato definidor da gastronomia nacional nasce afinal de uma vontade política, espalhada por todo o território pela propaganda do regime, há na linha de fronteira com a Galiza uma tradição que encontrou maneira de resistir ao menu do fascismo. E, na maior parte das vezes, foi jogo de gato e rato.

Avelino Fernandes, antigo guarda-fiscal em São Gregório, freguesia de Melgaço e a mais nortenha do território nacional conta que em novembro e dezembro já se sabia que aumentava o contrabando de polvo. A PIDE andava sempre em cima deles para controlarem o polvo. “Eram maus como as cobras, pois eram capazes de deixar uma família sem ceia na consoada para cumprir as ordens superiores”.

Muitos destes guardas-fiscais eram homens da terra e na maior parte dos casos fechavam os olhos à passagem do repasto natalício. Para este ex-guarda-fiscal a sua memória preferida de quase quatro décadas naquele ofício, foi o dia em que prenderam os agentes da polícia política, em abril de 1974.

O posto de Alfândega de S. Gregório continua a resistir ao tempo, mesmo que as janelas estejam partidas e as portas emperradas. No tempo em que quase tudo era proibido passar na fronteira, as pessoas arranjavam mil e uma maneiras de disfarçar a entrada de mercadoria. Traziam coletes encostados ao corpo, camadas falsas de roupa, tudo o que se conseguisse imaginar. Mas, na altura do Natal, não precisavam de ser revistados pois eram denunciados pelo cheiro.

Fosse a carga pequena e os guardas geralmente deixavam passar. Mas às vezes havia contrabando graúdo, centenas de quilos era apreendido e queimado numa fogueira pela PIDE. Era uma dor de alma ver aquela comida toda estragar-se num país onde faltava tudo, menos a fome.

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Há em Melgaço um museu chamado Memória e Fronteira onde se presta homenagem às décadas em que a passagem para Espanha era atividade furtiva. Ao contrabando, mas também à emigração. Os arquivos das apreensões pela Guarda-fiscal estão ali guardados – e basta olhar para os registos para perceber como o polvo era importação da quadra natalícia.

Quando chegava a altura do polvo tinham de ter cuidados redobrados, por causa do cheiro que largava. A passagem fazia-se entre as duas e as três da manhã, na hora em que até as pedras dormem, no dizer dos contrabandistas. Cada pessoa com quarenta quilos de polvo seco atados por um cordel, e às vezes eram mais de uma vintena a tentar cruzar o rio. O primeiro passava sempre sem carga, não fosse a Guarda estar à espreita. Se fosse apanhado gritava que andava ali raposa e voltavam todos para o mato.

O caminho para ir buscar o polvo era longo, trinta quilómetros pelo meio do mato, que na estrada podiam ser apanhados pela Guardia Civil. Só andavam de noite, e sempre em silêncio. De dia dormiam no meio do bosque.

Se nas casas da raia ainda é o polvo que vai à mesa na noite da consoada, o mesmo acontece no sul da Galiza. Uma das explicações é pelo facto da região ser muito montanhosa e ter historicamente uma enorme carência de produtos frescos. Isso vale para os dois lados da fronteira.

Segundo o sociólogo Albertino Gonçalves é mais fácil encontrar diferenças alimentares entre o norte e o sul do Minho do que entre os alto-minhotos e os galegos do Sul. Em termos culinários, como em muitas outras questões, são exatamente a mesma região.

Fonte: Notícias magazine

 

 

publicado por Brito Ribeiro às 16:34

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