A elevada taxa de endogamia, reforçada pela estigmatização dos pescadores pela cultura dominante, assente na posse da terra como fonte de prestígio e de poder, acabava por promover a prevalência de determinadas características próprias das comunidades mais isoladas.
De um modo geral, o homem casava cedo e as raparigas ainda mais novas, começando a proliferar de seguida. A fecundidade ilegítima foi pouco expressiva em Gontinhães durante o século XVII, mas estes valores tenderam a ser bastante mais elevados, chegando a atingir os 16,4% entre 1860 e 1869 e os 20,2% entre 1920 e 1924.
Estes valores são idênticos em toda a região do Minho para os mesmos períodos, “encontrando-se provavelmente associada à desproporção já referida entre sexos que induziria muitas mulheres a optarem pela maternidade fora do quadro do matrimónio legítimo” (Rego, 2012).
As habitações eram exíguas, pobres e espartanas, muitas vezes conseguidas pela desafectação de espaços nas casas dos progenitores de um dos elementos do novo casal, geralmente na casa dos pais da rapariga. Fazia-se uma “barraquinha” no quintal, para os noivos começarem a nova etapa da vida em comum, pois os espaços perto do portinho escasseavam.
O bairro eram as casas de cores desvanecidas pelos ventos e o sol de gente humilde e íntegra.
A imagem acima apresenta, como exemplo, a casa duma família de pescadores com origem no ano de 1858. Quando foi construída albergou uma família constituída por um casal e 12 filhos. Na cozinha havia um forno para cozer pão. O milho era adquirido numa casa de lavradores da alta freguesia e moído no moinho do Paço. De Verão, este pescador dava peixe ao lavrador que, no Inverno, lhe retribuía com o milho.
No pequeno sótão armazenava peixe seco para ser consumido durante o penoso Inverno, a par do porco que se criava para alimentar a família. Era, para aquele tempo, uma casa com algum estatuto no contexto do bairro piscatório. O seu proprietário possuía barcos que, no Inverno, varava para dentro do varadouro que se estendia até à praia.
O característico bairro piscatório tinha ruas estreitas e encruzilhadas, casas baixas e de pequena dimensão, algumas de chão térreo, com janelas onde os vidros partidos eram por vezes substituídos por trapos, pedaços de madeira ou de zinco.
Também os sanitários eram uma raridade e as necessidades, nestes casos, tinham de ser feitas em baldes de latão, ou nos penicos geralmente esmaltados, comprados na feira, que todas as manhãs, bem cedo, eram despejados nas estrumeiras dos logradouros ou em outra parte habitual.
Durante o dia, os homens iam tradicionalmente evacuar ao socairo da muralha poente do castelo, cada qual no seu sítio certo, e as mulheres mais idosas – pelo menos algumas – não se incomodavam de urinar em plena via pública, apenas abrindo ligeiramente as pernas e arregaçando um pouquinho as saias compridas, limpando-se em seguida com a maior naturalidade com duas roçadelas da roupa.
Parece surrealista referir estas coisas, tão longínquas estão do nosso quotidiano, dos hábitos e condições de higiene actuais e até mesmo das melhorias que já aqui e ali o bairro piscatório evidenciava.
No início da instalação da comunidade piscatória, na primeira metade do século XIX, os primeiros a chegar escolhiam os melhores espaços livres, mas com o passar dos anos, quer por já estarem ocupados, quer pela disputa que a comunidade rural e forasteiros faziam aos espaços ainda vagos, o preço dos terrenos subiu de modo que os pescadores, gente de parcos recursos, não tinham modo de adquiri-los. Por isso, a subdivisão dos espaços e a sobrelotação das casas era uma constante, que só começou a atenuar-se com a ida dos marítimos para as campanhas de pesca do bacalhau.
Apesar das condições miseráveis a bordo dos lugres bacalhoeiros no inicio do século XX, do risco de vida constante da pesca solitária nos doris e da forma despótica como geralmente eram tratados pelos oficiais, estes pescadores obtinham no final de cada viagem, recursos financeiros que eram impensáveis de conseguir na pesca local.
O investimento natural desses recursos financeiros era a compra de terreno e construção de casa, tarefa concluída ao fim de muitas campanhas.
Os que por cá ficavam ou eram tripulantes das lanchas e mais tarde das motoras ou pescavam com as masseiras, constituindo uma sub cultura dentro da classe piscatória ancorense; eram os mais pobres entre os pobres e devido às características intrínsecas da masseira, dedicavam-se à pesca de espécies costeiras ou que requeriam menor investimento de equipamento.
O casamento de filhas de arrais ou tripulantes de volanteiros, embarcações de pesca do alto, com tripulantes de masseiras, era encarado com reserva pela família, perspectivando uma distinção de classe assente no pressuposto de serem os gameleiros mais pobres e os volanteiros mais ricos.
Assim, a rapariga devia casar com um rapaz do seu estatuto e não com o tripulante da masseira. Mas os jovens, persistentes e apaixonados, por vezes impunham-se à vontade da família.
Um bom partido era casar a filha do pescador da masseira com um pescador do barco ou do volanteiro, melhor ainda.
Os cochichos e as más-línguas não demoviam geralmente as convicções e tudo acabava no dia em que o barco do noivo se engalanava com bandeiras multicolores a anunciar os “banhos” do noivado. Após o casamento, quer o noivo, quer a noiva eram bem aceites pelas respectivas famílias.
Não se falava noutra coisa no portinho. Finalmente, o fulano e a fulana iam casar e não faltaria festa no Portinho.
As crianças esperavam à porta da casa dos noivos. Então, à chegada da igreja, era lançada uma chuva de confeitos coloridos sobre os noivos para gáudio das crianças, que no chão disputavam o maior número destas iguarias doces que pudessem arrecadar.
As assimetrias de estatuto na mesma cultura também se verificou mais tarde relativamente aos pescadores do bacalhau. Qual era a rapariga que não gostava de casar com um bacalhoeiro? Para mais, até lhes chamavam “banqueiros”, embora isto significasse pescador dos Bancos da Terra Nova.
E, mais tarde, também era diferente o estatuto do pescador da linha em relação ao pescador do arrasto.
Embarcações e pescadores constituíam assim o centro gravitacional de uma comunhão de valores e tradições de grande significado social e antropológico, tecendo um universo de características singulares sempre com a marca indelével do mar e com tudo o que no seu entorno se desenrola.
Se as condições atmosféricas estivessem de feição, entre o auto-consumo e a venda do peixe capturado, o pescador das masseiras conseguia o sustento da família que ia aumentando com o passar dos anos. Quando chegava a invernia e as tempestades obrigavam a recolher os barcos no Campo do Castelo e nas ruas estreitas das proximidades, a fome não tardava a aparecer. Empenhar as alianças ou algum fio de ouro, ir à lenha ou às pinhas para vender, pedir empréstimo a algum membro da comunidade mais remediado, aceitar qualquer biscate que surgisse ou pôr um saco ao ombro e ir pelas casas dos lavradores mendigando algo de comer, era a solução para ultrapassar mais uma crise e mitigar a fome dos que ficavam em casa.
Ciclicamente despontava algum pico de doença ou fome, que vinham agravar as débeis condições de nutrição e salubridade da classe piscatória. Em 1897, a Junta de Paróquia solicitava uma dádiva à Câmara de Caminha, para matar a “fome que está oprimindo cerca de 700 pessoas da classe piscatória, quase um terço da população (…) para que comprem um pouco de pão e mitiguem a fome dos filhos”.
Estas crises estavam relacionadas com quebras de produção agrícolas devido a más condições climatéricas ou pragas, gerando períodos de escassez alimentar, logo aumento dos preços dos cereais e outros bens essenciais.