Cada família gerava um número farto de crianças, que aprendiam rapidamente os usos e costumes da classe. Desde muito cedo que acompanhavam as mães na azáfama do portinho, trepando velozes para o interior dos barcos, local preferido das brincadeiras entre irmãos, primos e vizinhos.
Entre as famílias mais pobres, o rapaz era desde muito cedo posto literalmente na rua. As mulheres não gostavam de ver os filhos “enconados” em casa. Os rapazes passavam a infância despreocupada dias inteiros fora de casa, brincando na praia ou no “Campado”, só regressando a casa para as refeições. A propósito do modelo de educação da criança do meio rural, e que se pode aplicar à criança do meio piscatório, Moisés Espírito Santo, Professor universitário, etnólogo e sociólogo diz:
“…visa a autonomia individual, pelo jogo criador, pelo ritual festivo, sobretudo, pela integração da criança no mundo e no trabalho dos adultos, fazendo-se coincidir a idade da emancipação social com a idade da emancipação biológica, por volta dos catorze anos; o modelo urbano não visa a autonomia dos indivíduos e menos ainda o desenvolvimento das suas potencialidades criadoras; procura sobretudo os jovens numa relação familiar e torná-los objectos de afectos serrados e, podíamos dizer, egoístas”.
Era frequente haver famílias com uma dúzia de filhos, ou mais, registando-se um intervalo significativo entre os filhos mais velhos e os mais novos. As mulheres eram mães desde novas e muitas continuavam a ter filhos já na casa dos quarenta.
Até finais do século XVIII a mortalidade infantil ceifava cerca de um quarto dos nascidos antes de completarem um ano e apenas metade das crianças completava os 7 anos.
No século XIX e mesmo durante boa parte do século XX, a criança ocupava um lugar muito secundário na sociedade. Os cuidados e a preocupação que hoje rodeiam as crianças eram praticamente inexistentes naquela época. Muitas eram as que não sobreviviam após o primeiro ano de vida e as que conseguiam ultrapassar essa “barreira” etária, viviam uma infância e uma adolescência marcadas pela privação e a penúria.
A mortalidade infantil em Portugal do início do século XX estava entre os 210 e 240 óbitos por cada 1000 nascimentos. Se acrescentarmos a mortalidade em idade juvenil, verificamos que uma parte significativa da prole nunca chegava à idade adulta.
A morte de uma criança era vista com alguma “naturalidade” e até com uma certa “frieza” da sociedade. Os cortejos fúnebres de “anjinhos” (crianças falecidas que eram colocadas em pequenos caixões brancos) eram frequentes, acompanhados pelos familiares, adultos e crianças.
É também no início do século XX que um conjunto de ilustres médicos, entre os quais se destaca o Dr. Ricardo Jorge, dão início a um conjunto de medidas tendentes à melhoria das condições sanitárias das populações, particularmente nos meios urbanos. É também nesta época que a caridade começa, lentamente, a ser substituída pela assistência pública e que se verifica uma progressiva responsabilização do Estado em relação à sua função assistencial e de protecção dos cidadãos, nomeadamente das mães e suas famílias (Remoaldo, 1995).
A Freguesia de Gontinhães, apesar de bem servida de acessibilidades, continuava muito longe dos tais meios de assistência que existem em cidades como Lisboa e Porto. As crianças e adolescentes continuavam entregues à sua sorte, indiferentes ao destino, agarrados à saia da mãe, brincando entre as masseiras e finalmente contribuindo para o sustento da família, que crescia a cada ano.
Desde 1879 que existia no Lugar do Santo, uma escola de instrução primária masculina, oferecida pelo benemérito António Manuel Alves do Rego, claramente destinada ao núcleo populacional mais interior e rural da freguesia de Gontinhães, deixando de fora o Lugar da Lagarteira (Nuceartes, 2011).
Um dos editoriais do Jornal “A Voz do Âncora” em 1904 dá voz à reivindicação de uma escola para a Lagarteira e para a inexistência de escola para o sexo feminino:
“Criação de uma escola do sexo masculino, exclusivamente destinada ao local tradicionalmente designado pelo nome de Lagarteira e subúrbios, bem como de escolas para o sexo feminino a par de cada uma para o masculino, de modo a ficarem servidas todas as freguesias de escolas para os dois sexos.”
Só depois da implantação da República em 1910, é que a educação teve mais atenção por parte dos Governos quando cria o Ministério da Instrução em 1913, em substituição da Direcção Geral da Instrução Pública.
Porém, o ensino obrigatório de três anos só é implementado em 1930 e iria vigorar para os rapazes até 1956 e para as raparigas até 1960. Posteriormente, passou a ser obrigatória a instrução primária de quatro anos.
Ora, as crianças da Lagarteira, inseridas numa comunidade com características muito vincadas, de certa forma isolada, com a escola longe e sem compreender a necessidade da alfabetização e da instrução escolar, pouco valorizava esta questão, preferindo empurrar para o mar as crianças entre os sete e os dez anos de idade, contribuindo assim para o sustento familiar. Porém, as crianças não estavam impedidas de brincar em todas as oportunidades possíveis e trepar para as masseiras fundeadas no portinho após umas rápidas braçadas, era uma vitória sempre bem saboreada. É claro que nada se comparava à aventura de remar a masseira até ao “Sabugo” e “encarrilhá-la” aproveitando a ondulação para fazer deslizar o barco à frente da onda. Esta proeza arriscada dava, em regra, direito a uns “cachaços”, logo que os atrevidos chegassem a terra, por parte do proprietário da embarcação ou dos progenitores.
Outra actividade das crianças era mariscar na “ribeira”, pescando barbos, “bretas”, lucinhas ou “cabritos” (cabozes) com uns equipamentos rudimentares; umas pequenas canas da Índia, uns restos de “sediela” (linha de nylon para pesca), por vezes emendada e um anzol eram tudo o necessário para uma pescaria. Para a chumbada, à falta do chumbo, servia um bocado de corrente de bicicleta, uma pequena pedra ou uma vela de automóvel.
Quando encontravam um bocado de ferro com a forma desejada, construíam à força de pancadas com um seixo um “bucheiro” para procurar polvos nas fragas durante a baixa-mar.
Outro divertimento consistia em construir pequenos barcos com “folha-de-flandres”, a embalagem usada em determinados géneros alimentares como as chouriças ou as bolachas. Estas chapas metálicas eram disputadíssimas e as crianças construíam pequenos barcos para depois navegarem junto aos molhes do portinho ou na foz do Rio Âncora.
De Verão, esta brincadeira, bem como a presença das crianças da classe piscatória, estava proibida na praia, havendo mesmo um zeloso cabo do mar sempre pronto a expulsá-las.
É deveras curioso como a Praia d’Âncora ganhou o epíteto de Praia das Crianças, e ainda hoje é assim conhecida, quando, simultaneamente, impedia que frequentassem a praia uma boa parte das crianças ancorenses, apenas pelo estigma de pertencerem à classe piscatória. Esta situação só se reverteu no final dos anos sessenta, início da década de setenta.
Ao longo do século XX o futebol foi ganhando notoriedade e adeptos por todo o mundo e a Lagarteira não foi excepção. O Campo do Castelo, relvado, amplo e acessível, era um local privilegiado para a prática do futebol, tendo por aquele espaço passado muitas gerações de praticantes, crianças e adultos.
As crianças organizavam grandes desafios, que ganhavam uma dimensão especial se eram travados com rapazes de outros lugares da freguesia. Geralmente acabava o encontro com uma boa sessão de “pedrada”, que levou bastantes à botica do Lúcio, e mais tarde do Brito, para fazerem os imprescindíveis curativos às cabeças rachadas.
A ligação das crianças ao pai era geralmente de algum distanciamento, pois este estava muito tempo afastado do convívio com os filhos. O pescador local dormia a maior parte das vezes durante o dia para sair ao anoitecer ou deitava-se à tardinha para sair de madrugada. Quando chegava do mar tinha as redes para consertar e o tempo livre passava-o na taberna onde as crianças não tinham entrada.
A desvalorização da figura paterna é, contudo, compensada pela sobrevalorização da imagem do pescador, com o recurso frequente à memória dos feitos dos antepassados, em especial a figura do avô, com quem se conviveu na infância e que após o seu desaparecimento será transformado num herói mítico.
A criança cresce ouvindo histórias cheias de aventuras, em que o avô deu provas de coragem e de sacrifício, defrontando quer os poderes naturais, como o mar, quer defrontando os poderes sobrenaturais. Mas o passado em que ocorrem estas histórias remete para uma concepção do tempo, ao mesmo tempo histórico, porque são contadas como ocorrências vividas por figuras e lugares de que a comunidade guarda a memória viva; são, por outro lado, narradas como ocorrências passadas num tempo mítico, fora da história, “no tempo em que os animais falavam” ou “quando Deus andava pelo mundo”.
O avô assume assim aos olhos da criança uma dimensão heróica, em tudo semelhante a uma figura lendária. Simultaneamente a figura da avó fica indelevelmente ligada às superstições e outros códigos de conduta perante o mundo e a sociedade, transmitindo oralmente aos netos, tal como em tempos tinha recebido da sua avó (Trindade, 2008).
Para se tornar pescador, começavam geralmente muito cedo, porque praticamente não frequentavam a escola, passando a maior parte do tempo entre os barcos no porto, pescando ou mariscando nas rochas, explorando desde muito cedo o meio de subsistência que os aguardava.
Quando tinha sete ou oito anos, começava a aprendizagem, fazendo parte da tripulação no barco do pai ou de outro mestre. O seu trabalho como rapaz a bordo, consistia em manter a embarcação sempre limpa e aprovisionada. O único pagamento que recebia era o conhecimento do ofício e a possibilidade de pescar no barco. Com o passar do tempo, a criança transformava-se em homem e aos poucos ia melhorando o seu desempenho e cobrar o seu quinhão.
Apesar do seu trabalho no mar, o jovem desempenhava tarefas em terra, como limpeza e conserto dos aparelhos, ajudar a reparar avarias ou pintar os cascos, bem como transportar as redes, ir à lenha ou às pinhas e até tomar conta dos irmãos mais novos.
Este processo de aprendizagem era longo e custoso. O mar era a escola e o porto a casa da maioria destas crianças, dos povoados costeiros portugueses e galegos, quase até finais do século XX.