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Mai 20

A morte suscita em todas as sociedades reacções e sentimentos varia­dos e contraditórios, a angústia e o medo, a atracção do desconhecido, a dor e o horror do cadáver em decomposição, o receio no retorno do espírito do defunto, ao desejo que este, agora transformado em antepassado, seja uma protecção para os seus descendentes. Na maior parte das culturas, consi­dera-se que o cadáver constitui o suporte material do espírito. O primeiro desaparece com a morte, enquanto o segundo é imortal.

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Na comunidade piscatória a morte era sentida de forma dramática e angustiosa devido aos frequentes naufrágios. Se, pelo contrário, ela resul­tava de doença, faziam questão em se confessar, comungar e pagar alguma promessa por cumprir, ficando tranquilos com a regularização da sua vida espiritual.

Se a morte era repentina, a família do morto redobrava as missas e sufrágios, de modo a compensar a falta dele não ter regularizado em vida as suas contas com Deus (Graça, 1982).

Mais uma vez se reafirma a forte religiosidade desta gente que gere a sua vida em torno de uma fé inquebrantável, mas frequentemente deturpa­da pela falta de conhecimentos religiosos.

O morto é amortalhado com a sua melhor roupa e a sala é forrada com crepes negros, sendo erguido no centro de uma das paredes um altar sobre o qual se coloca uma cruz ladeada por quatro velas. Sobre a porta da casa prega-se um pano preto a informar quem por ali passa que há um mor­to a quem se deve uma oração. À volta do caixão, os familiares, vizinhos e amigos, fazem o velório, chorando alto e expressando as virtudes do finado. Durante a noite é servido aos presentes café, bolachas e aguardente, para se manterem despertos.

Os funerais na classe piscatória eram uma manifestação de dor, de solidariedade de classe e de indisfarçável pobreza de recursos. As famílias mais pobres empenhavam-se para custear o funeral ou realizavam-se pedi­tórios para pagar a urna.

A abrir o cortejo fúnebre, os estandartes das Irmandades das quais o falecido era “irmão”, seguido pelos meninos da Cruzada, vestidos com as opas de cores garridas, destoando estas entre o conjunto de vestimentas e semblantes carregados. Depois da urna, transportada por homens voluntá­rios que se revezam ao longo do caminho, coloca-se a família e a encerrar o cortejo todos aqueles que se associam a esta mani­festação pública de dor.

Quando falecia uma criança, os “anjinhos” eram inumados em pequenos cai­xões brancos e os funerais acompanhados por grande número de crianças, entre familiares e vizinhos.

À cabeceira das tum­bas colocava-se uma cruz de madeira com a marca do falecido ou do chefe de família, gravada com a ponta da navalha. Quando as campas passaram a ser identificadas com os nomes em placas de lousa, continuaram a desenhar as marcas nas costas destas, para que os membros da comunidade que não soubessem ler tivessem uma referência sobre quem estava ali sepultado.

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Se a morte acontece como consequência de um naufrágio, mesmo antes do cadáver aparecer, “deita-se” luto e pode-se rezar missa. É uma an­gústia enorme a juntar ao desgosto pelo falecimento, se o mar não devolve o corpo, pois o luto não é totalmente consumado até este ser devolvido à terra e feito o funeral.

A morte natural por velhice representa a nível humano a continuação do ciclo geral da natureza. Apesar das diferentes atitudes perante a morte, um dos aspectos a ter em conta é a preocupação de que todos os rituais sejam cumpridos na íntegra, de modo a garantir o descanso eterno depois de uma vida repleta de agruras.

O luto pelo familiar falecido era reconhecido pelo vestuário negro que passavam a usar e que no caso das mulheres, face ao falecimento do mari­do, nunca mais era aliviado. O homem podia usar uma braçadeira preta na manga do casaco.

O isolamento da classe piscatória era notório, havendo pescadores que apenas passavam para “o lado de cima” do caminho-de-ferro para acompa­nhar um funeral. Fora isso, a vida resumia-se ao seu bairro e ao “seu” mar.

Constatamos que na Guarda o cerimonial relacionado com a morte e o luto eram parecidos, existindo apenas uma diferença de vulto, pois existia uma Irmandade para a qual se pagava quota a partir dos 14 anos e que depois garantia as despesas do funeral. Esta Irmandade desapareceu por volta de 1965.

Ciclicamente, despontavam surtos de doença que provocavam picos de mortalidade na região. Quando atingia o estatuto de epidemia, afectava principalmente os grupos populacionais mais frágeis e desfavorecidos, como o da Lagarteira, que trabalhavam e viviam em condições de segurança e de higiene mais precárias.

Quer no século XVIII, com diversos surtos de tifo, quer no século XIX com os surtos de cólera que começaram por 1833 e se prolongaram até 1852 e que terá provocado cerca de 40.000 vítimas mortais, resultaram em falta de mão-de-obra, levando à escassez de cereais e ao aumento exponencial do preço destes, decorrendo situações de fome e pobreza, agravando as precárias condições de higiene e subnutrição.

Em 1895 uma epidemia de varíola varre Gontinhães, sendo 60,9% dos óbitos registados na zona litoral da freguesia. Especialmente nos me­ses mais quentes, as epidemias de varíola (popularmente designada por “bexigas”) e tifo ou difteria, atribuídas aos “maus cheiros” dos estrumes do patêlo, que por ali se costumava empregar como estrume, pelo que as autoridades administrativas ordenaram que este estrume depois de colhido no mar seja imediatamente enterrado a um pal­mo de profundidade (Rego, 2012).

O correspondente local de “O Jornal da Manhã”, diário portuense, em 16 de Junho de 1885, refere na sua crónica sobre Gontinhães:

“nesta freguesia há muito a fazer, particularmente no porto de pesca, e nas casas de alguns lavradores que, nada cuidadosos da sua saúde, têm as cortes dos gados vacum e suíno juntas ou por baixo dos aposentos em que habitam e dormem”.

Como os cadáveres eram inumados no átrio da Igreja e este já es­tivesse sobrelotado, o Governo Civil de Viana do Castelo exige à Adminis­tração da Câmara de Caminha que proceda de imediato à aquisição dos terrenos necessários à construção do cemitério. Esta delibera rapidamente e por unanimidade na compra 886 m2, mas será a Junta de Paróquia de Gon­tinhães a efectuar empréstimos e a lançar derramas para custear a obra, que se concluirá em 1897.

A propósito das Juntas de Paróquia, até ao Liberalismo, não há uma estrutura civil separada da estrutura eclesiástica. Com a reforma administrativa de 18 de Julho de 1835, surge a estrutura civil da Junta de Paróquia, autonomizada da estrutura eclesiástica. Com a Lei n.º 621, de 23 de Junho de 1916, as paróquias civis passam a designar-se freguesias (e a Junta de Paróquia passa a designar-se Junta de Freguesia), fixando-se assim a diferença entre a estrutura civil (freguesia) e a estrutura eclesiástica (paróquia).

Apesar de alguns surtos epidémicos de média dimensão no século XX, é a epidemia de gripe espanhola ou pneumónica, estirpe do vírus Influenza A, do subtipo H1N1, que terá vitimado entre 120.000 a 150.000 portugueses, de 1918 a 1920 e que vai marcar profunda­mente a sociedade portuguesa. Este surto de pneumónica ter-se-á iniciado junto das tropas aliadas no final do conflito mundial de 1914-1918 e rapida­mente se espalhado por todo o Globo com a desmobilização dos militares.

Embora estejam registados cerca de 8.000 óbitos no Distrito de Viana do Castelo, é provável que o número real de mortes seja sensivelmente o dobro do registado e o número de contágios em Gontinhães, incidia maioritariamente em residentes do Lugar da Lagarteira.

A partir do dia 4 de outubro surgiram inúmeros casos de marinheiros, grumetes, marítimos, remadores, fogueiros, barqueiros. Fica claro que es­tes indivíduos, ligados à atividade marítima, contaminaram os restantes elementos das respetivas famílias, surgindo posteriormente casos de in­ternamentos de peixeiras, criadas, jornaleiras e domésticas.

Assim, parece-nos evidente que esta primeira vaga de pneumónica teve origem, quer ao nível do concelho quer ao nível da paróquia, junto das comunidades marítimas, através de uma constante comunicabilidade com parceiros económicos portuários, em particular de origem galega. A ex­pansão da gripe, reportada pelo Provedor da Misericórdia, iniciou-se nas paróquias que mantinham maior contato com a raia fronteiriça e litoral (Caminha, Gontinhães, Seixas, Moledo, Cristelo), tendo alastrado poste­riormente para o interior do concelho.

Esta epidemia acabou por se propagar a outros setores da população, de tal modo que, afetando as demais atividades económicas, se repercutiu no volume da mão-de-obra, em particular afeta à produção agrícola. (Rego, 2012)

A Freguesia de Gontinhães e a classe piscatória em particular, bem como as freguesias próximas, tiveram nesses tempos difíceis, a ajuda abne­gada do Dr. Luís Ramos Pereira, que mesmo residindo em Lisboa, abandonou os seus afazeres para acorrer aos doentes contaminados com a pneumónica, na sua terra de adopção.

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Luís Inocêncio Ramos Pereira nasceu no Porto a 18 de Setembro de 1870 e formou-se em medicina e cirurgia na escola Médico-Cirurgica do Por­to em 1897, mas tinha as suas raízes em Riba d`Âncora, terra natal de seu pai José Bento Ramos Pereira, comendador e benemérito, que fez fortuna no Brasil. Desde muito novo que o Dr. Luís Ramos Pereira se apaixonou pelo ambiente marinho, pela náutica e pelos homens que, dia a dia, tiravam o sustento do mar, muitas vezes à custa da própria vida.

Militante do Partido Republicano Português, era Presidente da Comis­são Municipal de Caminha deste partido.

A sua ida para Lisboa no início de 1911 teve a ver com a eleição de de­putado à Constituinte, pelo círculo de Viana do Castelo, passando a também a exercer as funções de médico dos Caminhos de Ferro do Sul e Sudeste e, a partir de Novembro de 1910, as funções de administrador, por parte do governo, junto da Companhia do Niassa.

Luís Ramos Pereira, republicano, agnóstico e democrata convicto, exerceu o cargo de senador, para o qual foi sucessivamente eleito, até ao 28 de Maio de 1926, excepto durante o advento de Sidónio Pais. 103

Em 1918, com o surto da gripe pneumónica o Dr. Luís ao saber que a epidemia alastrava perigosamente no Vale do Âncora, abandonou Lisboa, hospedou-se na casa do amigo “Ramos Dentista” e durante meses, volun­tariamente e à sua custa, prestou a assistência possível aos doentes que diariamente eram infectados com tão gravosa doença. O “Ramos Dentista” como era popularmente conhecido, chamava-se António Maria Ramos e era morador na Rua 5 de Outubro, em frente ao cruzamento da Rua Celestino Fernandes

Enquanto senador da República teve sempre um papel de influência junto das ins­tâncias governamentais e foi graças a ele e a perseverança de mais alguns ancorenses, como o Dr. Laureano Brito e Pinheiro de Azevedo, que se conseguiu financiamento para construir a avenida marginal, a qual, mais tarde, teria o seu nome.

Mas outras obras e melhoramentos foram conseguidos com a sua influência junto do go­verno da República, como a abertura da delega­ção marítima em 1919, o salva vidas e o serviço de socorros a náufragos em 1913, o posto da GNR e a elevação de Gontinhães a vila em 8 de Julho de 1924.

Tal como o seu pai, também o Dr. Luís Ramos Pereira foi agraciado com a Comenda da Ordem de Cristo.

Faleceu em Lisboa a 24 de Julho de 1938 e foi sepultado por sua ex­pressa vontade em Vila Praia de Âncora. No cemitério local, a lápide tumular do seu jazigo de família, diz apenas, “Ramos Pereira entre amigos”.

publicado por Brito Ribeiro às 12:07

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