Ambiente, história, património, opinião, contos, pesca e humor

14
Nov 09

Este conto baseia-se no naufrágio do "Janko" ,um navio tanque que se partiu na costa da Galiza, naufragando uma das partes na costa portuguesa, perto da Capela de Santo Izidoro, Freguesia de Moledo.
 
O vento ciclónico soprava entre os ramos agitados dos pinheiros. A caruma voava e as pinhas desprendiam-se precoces. Pássaros sarapantados, escondiam-se algures entre a folhagem de arbustos rasteiros. Mais um galho quebrado abate-se na areia que lhe vai servir de cama. O som de madeira rachada faz-se ouvir, logo abafado pelo supremo uivo do ar em correria desesperada de norte para sul.

Na povoação as crianças agarradas às saias das mães tremelicam de medo e frio, que o Fevereiro trás o diabo nele. Temporal assim não lembrava aos mais velhos, já vão mais de duas semanas sem tréguas nem acalmia. Quantas telhas voaram dos frágeis casebres junto à praia. Até a chaminé do Tio Caçola se abateu rendida ao sopro de Éolo. Vidas miseráveis, ainda mais pobres quando o tempo amainar. Só pode ser obra do Demónio… ou do Senhor que está zangado. Por via das dúvidas acende-se o círio no oratório da sala e faz-se novena devota com esmola e promessa.

Os homens na loja da Curraca olham para o mar e não reconhecem as águas que lhes dão peixe, que lhes dão de comer. Vagas altas como castelos, coroadas de espuma suja que entram terra dentro para engolir os seus pobres haveres e tomar conta do que um dia foi seu. Mais logo, pela praia mar, vai molhar-lhes os pés, são marés mortas, se fosse esto de lua nova arrebentava com portas e postigos.

Entre duas tigelas de carrascão e o baralho sebento, discute-se o temporal que vem de noroeste, dos ingleses ou dos Açores, dizem aqueles que já foram ao bacalhau. Um vulto tapa por momentos a abertura da única porta da loja. A penumbra do interior torna-se tão carregada que nem a chama do candeeiro de petróleo sobre o pipo do vinho branco consegue penetrar. Entra sacudindo a samarra, limpa o rosto molhado à manga, resmunga uma praga que só ele percebe.

- Vem um navio à deriva – exclama com voz rouca perante a turba que não se contem com perguntas – para os lados da Meia Légua. Está partido em dois… vem dos galegos e vai encalhar…

Como impelidos por uma força maior, todos se acotovelaram para cruzar a pequena porta de duas folhas. Das toscas mesas não se moveram dois velhos que mal se tinham nas pernas e a dona da loja, ao balcão a aviar fiados que hão-de de ser saldados com o apuro das primeiras fainas. O mensageiro deixou-se cair sobre um dos bancos corridos e engoliu sôfrego o tinto que manchava a tigela esmoucada.

- Ainda tenho tempo, que o vapor está longe e vem a direito das Paredes Altas – justifica-se – vou a casa buscar uma corda que há-de dar jeito mais logo.

Os velhos acenaram com a cabeça, compreendida a intenção de saquear os despojos arrojados à penedia, se a Guarda-fiscal não aparecesse primeiro, corvos de uma figa. Ladrões que queriam tudo para eles. Chegavam à terra pobres como Jó, com uma mão atrás outra à frente e em duas penadas já construíam casa e compravam leiras de cultivo.

A porta da loja ainda batia impaciente agitando rolos de fumo que se desfaziam no ar frio do exterior. O tropel dos tamancos esvaía-se ao longe, o silvar do vento e o rezingar do mar voltaram a encher a taberna.

O navio tanque que se partira a noroeste da Corunha trepou preguiçoso pelos rochedos e deixou-se finalmente vistoriar pelos miseráveis que nada tinham e que tudo lhes servia. Um pedaço de ferro, uma camisa, um cabo, um saco de batatas, uma navalha; a tinta que enchia os porões libertava um fedor atordoante, mas já não havia nas redondezas nenhum balde, púcaro ou gamela que sobrasse. Tudo servia para arrecadar o precioso líquido que na primavera iria refrescar as paredes e os muros escurecidos do musgo invernal.

Os da Guarda Fiscal montaram vigia em terra durante dias, enquanto os homens acorriam ao salvado por o lado do mar, desembarcando das frágeis masseiras sempre que o mar lhes concedia uma calada. Uns ficavam aos remos a governar a embarcação, outros saltavam a penedia até às entranhas ferrugentas do velho “Janko” para lhe escoarem mais uns litros do precioso esmalte branco.

Da ociosidade da tasca já ninguém recordava, agora valia o negócio que gentes de Viana vinham fazer, a notícia correu célere, tal como no tempo do volfrâmio que ganhava quem mercava e pouco rendia a quem esgravatava. Negócio feito, tenda desfeita, a tempestade já lá vai, do vapor faz-se sucata, as dívidas estão saldadas, boa ajuda deu esta empreitada.

As redes da pescada estão prontas, os camaradas a postos, ultimo empurrão e a masseira flutua nas águas remansosas do portinho. Remos na mão, que vento só ao largo.

“Ala, ala, que temos de aproveitar a maré, o Senhor dos Aflitos vela por nós e as mulheres que ficaram hão-de dizer um Padre-Nosso por nós”.

 

 

publicado por Brito Ribeiro às 11:53
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Muito bonito, até parece que podemos observar tudo... E para surpresa maior, a tigela "esmoucada", um termo que bem conheci e já se tinha evaporado do meu vocabulário.
Parabéns.
Abraço
Eira-Velha a 20 de Novembro de 2009 às 19:41

Há termos que nos "saem" quando associados a imagens do passado, à recordação de pessoas. Neste caso eram as tigelas (ou malgas) da tasca da Curraca, como podiam ser as da casa dos meus pais ou avós.
Abraço
BR
Brito Ribeiro a 20 de Novembro de 2009 às 23:06

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