Texto e gravuras de António Pedro, publicadas na revista "Panorama" em 1943.
"A Praia do Moledo é onde começa Portugal a encontrar-se com o mar. O namoro começa ai.
Na Galiza não há praias. As que há são uma nesga de areia que lá consegue esgueirar-se entre rochedos e onde o mar, de apertado, nem tem espaço para rolar uma onda com jeito. O resto é rocha, a pique, empinando-se recortada a todo o longo da costa, e que às vezes parece, do melindre, espuma que se fês preta de velha, ali parada a impedir a brincadeira do mar, às vezes; em moles lisas, sobrepostas e imensas, faz supor que os montes se arrependeram tarde de entrar por ele dentro, e acomodaram a sua beleza, desajeitada e tamanhona, a um contraste que os esfria.
É claro que isto é literatura, e da má, mas aquilo pede literatura. Dizem que parece os fjords. Do que eu conheço, não se parece com nada.
Depois há o Minho, que é um assombro, mas um assombro suave. Creio que é no rio Minho que se fabrica aquela cor doirada da luz do céu, por estas paragens, mais subtil que nenhuma. A luz entra pelo meio das galhas dos pinheiros e lubrifica-as de sonho, poisa sobre a mata do Camarido e alfombra-lhe os reflexos, entremeia-se nos milhos, desenha as casinhas brancas de Cristelo, na encosta do monte, respira-a a gente, e tudo resulta leve como uma suspeita de alegria.
Sei lá se isto é assim. Sei que não há terra bonita no mundo mais bonita que esta Praia do Moledo que pega na areia da foz do rio e a traz, por uma porção de quilómetros, até aos rochedos de S. Isidoro, uma areia fina, acolhedora e sensível que parece feita para brincar.
Tudo em Moledo é de propósito para ser lindo! A concha da praia, que é enorme, fecha-a pelo Nascente a corda dos montes, que vêm da Serra de Arga, e ali se ajeitam, proporcionados. Ao Norte, a Galiza acaba por um cone de pedra e árvores, como se quisesse ter fechado a fronteira com um monumento natural. É Santa Tecla. Na desembocadura do rio há uma ilha que foi poiso de monges militares, a ínsua, fortaleza maneirinha plantada no meio do mar como num cenário.
E o mar é verde, azul, espantoso como sempre, até a um horizonte nítido. Moledo é assim. Não precisa de nenhum pitoresco de almanaque folclórico. Chega-lhe o mar, a terra e o céu para não ter inveja de ninguém.
Monte maninho para subir quem quiser desenferrujar as pernas em alpinismo barato, ou de escopeta, para os coelhos e perdizes, na falda do monte, uma aldeia rural com igreja, capela de devoção, cruzeiro de pedra, lindo, as parreiras do e verde t a ensombrar os caminhos pedregosos onde há “alminhas” em nichos junto às dunas da praia, ao longo da estrada nacional, umas dúzias de casas, as dos banhistas, e cerca de uma delas, uma capelinha linda, do século XVII, que foi para ali amorosamente transplantada de uns dez quilómetros de distância uma mata admirável de pinheiros e acácias, o Camarido, para abrigar da nortada ou ir dormir a sesta, numa rede, a encher os pulmões de saúde, a praia como nenhuma, e, se o mar traz sargaço, a faina de colhê-lo, com redanhos e ancinhos, os homens e as mulheres vestidos de oleado, os boisinhos minhotos, piscos e galegos, a ajudarem o arraste, o cheiro forte do iodo, o treme-treme do ar com a evaporação das algas, o guincho do eixo dos carros carregados pela praia fora, a azáfama da gente, é um espetáculo inesquecível num cenário inesquecível.
Ah, é verdade! Aqui as mulheres andam vestidas à moda do Minho. À moda de Moledo do Minho. Não se parece nada com o Carnaval…"