Ambiente, história, património, opinião, contos, pesca e humor

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Mai 20

A partir de finais de século XIX a Praia d’Âncora vai conhecer um cres­cimento notável, apoiado na pesca e no turismo. Se na pesca chega a atingir um lugar de destaque no conjunto dos portos do norte, o turismo provocará o aparecimento de algumas infra-estruturas que não eram habituais numa comunidade piscatória. Estamos a referir os vários hotéis, os banhos quen­tes e as casas comerciais de alguma envergadura.

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Os ritmos de vida da comunidade ancorense passam a ser determina­dos pelo contraste entre a azáfama do Verão, com a actividade da pesca, que mantinha as famílias dos pescadores ocupadas noite e dia, dando ao litoral um colorido e uma agitação permanentes, com barcos que fundeavam no “Sabugo” e outros que encalhavam na areia do portinho, com as mulheres que carregavam à cabeça os cabazes de sardinha, os pescadores remendan­do as redes ou “safando” os anzóis entre os barcos no varadouro.

À agitação normal da actividade piscatória do Verão, juntava-se a confu­são que a chegada de mui­tos de turistas que vinham “a banhos”. Chegado o fim do Verão, partiam os turis­tas, e as saídas para o mar tornavam-se mais espaça­das e irregulares. Quando ameaçava tempestade, os barcos eram arrastados para a parte mais alta do portinho, para o Campo do Castelo ou para o abrigo oferecido pelas ruas 13 de Fevereiro, dos Pesca­dores ou Celestino Fernandes, de modo a não serem arrastados pelo mar. A azáfama do Verão na Praia dava lugar à tranquilidade do Inverno.

A convivência com outras culturas, resultante de um processo de emi­gração, a democratização do país, o alargamento da escolaridade e a perda progressiva do peso da pesca em relação ao turismo, implicaram uma subi­da do nível de vida da maior parte das famílias, enfraquecendo a organiza­ção social da velha comunidade piscatória d’Âncora e a diluição das rígidas fronteiras de classe, que marcavam a separação entre a gente do mar e a classe média local, os agricultores, os comerciantes, os funcionários públicos e os prestadores de serviços.

Embora se tenha presente que a descontinuidade cultural deve ser entendida no tempo e não no espaço, deve-se ter em conta a dinâmica das relações entre a comunidade rural da “velha Gontinhães” e a efervescente comunidade piscatória da Lagarteira por um lado, e as relações de classe entre pescadores e não pescadores por outro, para perceber a cultura desta comunidade de pescadores.

Esta abordagem permite-nos falar da cultura dos pescadores como uma cultura popular, de classe ou como uma contracultura. Contracultura no sentido de cultura de um grupo dominado por oposição à cultura dominante, assente no valor e posse da terra como critério determinante de prestígio e poder (Cole, 1994).

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Entre os pescadores, o padrão de comportamento caracteriza-se por uma postura tranquila, mas em que os valores da coragem, a resistência física, o conhecimento das artes da pesca e dos mares, que podia ser avalia­do pelo sucesso na pesca, e o gosto pelo trabalho eram as qualidades mais importantes. O medo do mar era um dos estigmas que mais fragilizava a imagem do pescador, porque punha em causa um dos atributos fundamen­tais, simultaneamente definidor da sua virilidade e da sua capacidade para constituir ou suportar uma família.

Na comunidade piscatória da Lagarteira, tal como em outras comuni­dades marítimas, a endogamia (casamento entre membros da mesma classe) era até meados do século XX quase obri­gatória. Se um filho ou filha de pescadores casasse com alguém de fora, dizia-se que era por não conseguir arranjar par na própria terra.

A família constituía-se dentro do meio e seriam raras as excepções de rapazes ou raparigas casarem com membros externos à classe pisca­tória. Esta situação originou um cruzamento familiar muito denso, em que quase todos os membros da comunidade eram aparentados. Por outro lado, o elevado número de filhos fez crescer a comunidade piscatória de forma exponencial, pese embora a preocupante taxa de mortalidade infantil e os frequentes naufrágios com perdas de vidas humanas.

publicado por Brito Ribeiro às 12:29

A gastronomia da classe piscatória ancorense era pobre e variava apenas com a disponibilidade dos alimentos, em função das estações do ano. A sua principal fonte de proteína era o peixe, às vezes os ovos e, mais esporadicamente, a carne de porco e as aves de capoeiras.

O peixe era consumido fresco, salgado ou seco, constituindo estas duas formas de conservação uma reserva alimentar para o Inverno ou para os períodos prolongados de tempestade que os impedia de “ir ao mar”.

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Em finais do século XVIII e inícios do século XIX, uma conjuntura internacional condicionou a entrada de bacalhau, de consumo quotidiano, levando a uma atenção redobrada sobre métodos que, salgando a sardinha (e outros peixes), substituísse com êxito o “fiel amigo”. Esta sardinha ficou conhecida como “de barrica” (Amorim, Da pesca à salga da sar­dinha, 2014).

Quando vinham do mar, cada pescador tinha direito a um quinhão de peixe chamado “caldeirada” e que era constituído por exemplares com menor valor comercial ou com algum defeito (roído, por exemplo).

Era deste quinhão que a família se alimentava, cozinhando, conforme as espécies, em caldeirada, frito, cozido ou grelhado. Era também este peixe a base da refeição que o pescador levava para o mar no “foquim” ou “baú” e que comia a bordo num dos momentos de pausa, enquanto esperavam para alar as redes ou os anzóis. O baú, inicialmente era uma caixa em madeira que o pescador levava para o mar e que transportava a me­renda. No caso dos mestres, guardava também os documentos do barco, bem embrulhados em lona para não se molharem acidentalmente e a agulha de marear. Em meados do século XX a caixa de madeira foi substituída por uma caixa metálica.

Para consumir frio, a preferência era por peixe frito, simples ou com cebolada e variava entre fanecas, “sorelos” (carapau grande), maragotas, sardinha, raia, ca­ção, cavala, cascarra ou negrão. O acompanhamento habitual para o peixe era a batata, mas por vezes era substituído pelo arroz ou massa. O caldo de hortaliça era o aconchego dos estômagos, muitas vezes o único alimento em épocas de maior penúria.

O peixe que seca­vam era: a raia, a cascar­ra, o cação e o “sorelo”, dependia dos gostos de cada família. Os pescado­res das lanchas traziam do “Profundo” outras es­pécies como o “alimão” e a “pala” que também se­cavam ao sol, depois de esfregados com sal para a mosca varejeira não pou­sar. O “profundo” era um pesqueiro no extremo da plataforma continental a cerca de 35Km da costa.

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Em caso de doen­ça, era sacrificada uma ave da capoeira, com a qual se fazia a canja, sendo o restante consumido cozido. Em dias de festa também podia a galinha ser a ementa, guisada de preferência, pois as bocas eram sempre muitas a alimentar e assim “rendia” mais.

A importância do porco na vida dos pescadores, tal como na vida ru­ral, era fundamental. Embora nem todas as casas da classe piscatória “ma­tassem porco”, a maioria possuía uma pequena corte, onde criava o suíno, que depois era abatido e desmanchado, sendo as suas carnes aproveitadas para enchidos e para salgar. A carne de porco constituía mais de 80% da dieta carnívora dos pescadores. A matança do porco, um ou dois, conforme as necessidades e a importância da casa era, como diz o ditado, o governo da casa para todo o ano (Rosende, 2009).

A matança constituía, tal como ainda hoje, um dia de festa para os fa­miliares e vizinhos que vêm ajudar, pois são muitos os trabalhos que acarreta.

Fotos de Jorge Simão Meira

publicado por Brito Ribeiro às 12:24

A elevada taxa de endogamia, reforçada pela estigmatização dos pes­cadores pela cultura dominante, assente na posse da terra como fonte de prestígio e de poder, acabava por promover a prevalência de determinadas características próprias das comunidades mais isoladas.

De um modo geral, o homem casava cedo e as raparigas ainda mais novas, começando a proliferar de seguida. A fecundidade ilegítima foi pou­co expressiva em Gonti­nhães durante o século XVII, mas estes valores tenderam a ser bastante mais elevados, chegan­do a atingir os 16,4% entre 1860 e 1869 e os 20,2% entre 1920 e 1924.

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Estes valores são idênticos em toda a re­gião do Minho para os mesmos períodos, “en­contrando-se provavel­mente associada à desproporção já referida entre sexos que induziria mui­tas mulheres a optarem pela maternidade fora do quadro do matrimónio legítimo” (Rego, 2012).

As habitações eram exíguas, pobres e espartanas, muitas vezes con­seguidas pela desafectação de espaços nas casas dos progenitores de um dos elementos do novo casal, geralmente na casa dos pais da rapariga. Fazia-se uma “barraquinha” no quintal, para os noivos começarem a nova etapa da vida em comum, pois os espaços perto do portinho escas­seavam.

O bairro eram as casas de cores desvaneci­das pelos ventos e o sol de gente humilde e íntegra.

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A imagem acima apresenta, como exem­plo, a casa duma famí­lia de pescadores com origem no ano de 1858. Quando foi construída al­bergou uma família cons­tituída por um casal e 12 filhos. Na cozinha havia um forno para cozer pão. O milho era adquirido numa casa de lavradores da alta freguesia e moído no moinho do Paço. De Verão, este pescador dava peixe ao lavrador que, no Inverno, lhe retribuía com o milho.

No pequeno sótão armazenava peixe seco para ser consumido duran­te o penoso Inverno, a par do porco que se criava para alimentar a família. Era, para aquele tempo, uma casa com algum estatuto no contexto do bairro piscatório. O seu proprietário possuía barcos que, no Inverno, varava para dentro do varadouro que se estendia até à praia.

O característico bairro piscatório tinha ruas estreitas e encruzilhadas, casas baixas e de pequena dimensão, algumas de chão térreo, com janelas onde os vidros partidos eram por vezes substituídos por trapos, pedaços de madeira ou de zinco.

Também os sanitários eram uma raridade e as necessidades, nestes casos, tinham de ser feitas em baldes de latão, ou nos penicos geralmente esmaltados, comprados na feira, que todas as manhãs, bem cedo, eram despejados nas estrumeiras dos logradouros ou em outra parte habitual.

Durante o dia, os homens iam tradicionalmente evacuar ao socairo da muralha poente do castelo, cada qual no seu sítio certo, e as mulheres mais idosas – pelo menos algumas – não se incomodavam de urinar em plena via pública, apenas abrindo ligeiramente as pernas e arregaçando um pouqui­nho as saias compridas, limpando-se em seguida com a maior naturalidade com duas roçadelas da roupa.

Parece surrealista referir estas coisas, tão longínquas estão do nosso quotidiano, dos hábitos e condições de higiene actuais e até mesmo das melhorias que já aqui e ali o bairro piscatório evidenciava.

No início da ins­talação da comunidade piscatória, na primeira metade do século XIX, os primeiros a chegar escolhiam os melhores espaços livres, mas com o passar dos anos, quer por já estarem ocupa­dos, quer pela disputa que a comunidade rural e forasteiros faziam aos espaços ainda vagos, o preço dos terrenos subiu de modo que os pescado­res, gente de parcos recursos, não tinham modo de adquiri-los. Por isso, a subdivisão dos espaços e a sobrelotação das casas era uma constante, que só começou a atenuar-se com a ida dos marítimos para as campanhas de pesca do bacalhau.

Apesar das condições miseráveis a bordo dos lugres bacalhoeiros no inicio do século XX, do risco de vida constante da pesca solitária nos doris e da forma despótica como geralmente eram tratados pelos oficiais, es­tes pescadores obtinham no final de cada viagem, recursos financeiros que eram impensáveis de conseguir na pesca local.

O investimento natural desses recursos financeiros era a compra de terreno e construção de casa, tarefa concluída ao fim de muitas campanhas.

Os que por cá ficavam ou eram tripulantes das lanchas e mais tarde das motoras ou pescavam com as masseiras, constituindo uma sub cultura dentro da classe piscatória ancorense; eram os mais pobres entre os pobres e devido às características intrínsecas da masseira, dedicavam-se à pesca de espécies costeiras ou que requeriam menor investimento de equipamento.

O casamento de filhas de arrais ou tripulantes de volanteiros, embar­cações de pesca do alto, com tripulantes de masseiras, era encarado com reserva pela família, perspectivando uma distinção de classe assente no pres­suposto de serem os gameleiros mais pobres e os volanteiros mais ricos.

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Assim, a rapariga devia casar com um rapaz do seu estatuto e não com o tripulante da masseira. Mas os jovens, persistentes e apaixonados, por vezes impunham-se à vontade da família.

Um bom partido era casar a filha do pescador da masseira com um pescador do barco ou do volanteiro, melhor ainda.

Os cochichos e as más-línguas não demoviam geralmente as convic­ções e tudo acabava no dia em que o barco do noivo se engalanava com bandeiras multicolores a anunciar os “banhos” do noivado. Após o casamen­to, quer o noivo, quer a noiva eram bem aceites pelas respectivas famílias.

Não se falava noutra coisa no portinho. Finalmente, o fulano e a fula­na iam casar e não faltaria festa no Portinho.

As crianças esperavam à porta da casa dos noivos. Então, à chegada da igreja, era lançada uma chuva de confeitos coloridos sobre os noivos para gáudio das crianças, que no chão disputavam o maior número destas iguarias doces que pudessem arrecadar.

As assimetrias de estatuto na mesma cul­tura também se verificou mais tarde relativamente aos pescadores do baca­lhau. Qual era a rapariga que não gostava de ca­sar com um bacalhoei­ro? Para mais, até lhes chamavam “banqueiros”, embora isto significasse pescador dos Bancos da Terra Nova.

E, mais tarde, também era diferente o estatuto do pescador da linha em relação ao pescador do arrasto.

Embarcações e pescadores constituíam assim o centro gravitacional de uma comunhão de valores e tradições de grande significado social e an­tropológico, tecendo um universo de características singulares sempre com a marca indelével do mar e com tudo o que no seu entorno se desenrola.

Se as condições atmosféricas estivessem de feição, entre o auto-con­sumo e a venda do peixe capturado, o pescador das masseiras conseguia o sustento da família que ia aumentando com o passar dos anos. Quando che­gava a invernia e as tempestades obrigavam a recolher os barcos no Campo do Castelo e nas ruas estreitas das proximidades, a fome não tardava a aparecer. Empenhar as alianças ou algum fio de ouro, ir à lenha ou às pi­nhas para vender, pedir empréstimo a algum membro da comunidade mais remediado, aceitar qualquer biscate que surgisse ou pôr um saco ao ombro e ir pelas casas dos lavradores mendigando algo de comer, era a solução para ultrapassar mais uma crise e mitigar a fome dos que ficavam em casa.

Ciclicamente despontava algum pico de doença ou fome, que vinham agravar as débeis condições de nutrição e salubridade da classe piscatória. Em 1897, a Junta de Paróquia solicitava uma dádiva à Câmara de Caminha, para matar a “fome que está oprimindo cerca de 700 pessoas da classe pis­catória, quase um terço da população (…) para que comprem um pouco de pão e mitiguem a fome dos filhos”.

Estas crises estavam relacionadas com quebras de produção agrícolas devido a más condições climatéricas ou pragas, gerando períodos de escas­sez alimentar, logo aumento dos preços dos cereais e outros bens essenciais.

publicado por Brito Ribeiro às 12:19

Cada família gerava um número farto de crianças, que aprendiam rapidamente os usos e costumes da classe. Desde muito cedo que acompa­nhavam as mães na azáfama do portinho, trepando velozes para o interior dos barcos, local preferido das brincadeiras entre irmãos, primos e vizinhos.

55 - Embarcações no portinho, grande animação

Entre as famílias mais pobres, o rapaz era desde muito cedo posto literalmente na rua. As mulheres não gostavam de ver os filhos “enconados” em casa. Os rapazes passavam a infância despreocupada dias inteiros fora de casa, brincando na praia ou no “Campado”, só regressando a casa para as refeições. A propósito do modelo de educação da criança do meio rural, e que se pode aplicar à criança do meio piscatório, Moisés Espírito Santo, Professor universitário, etnólogo e sociólogo diz:

“…visa a autonomia individual, pelo jogo criador, pelo ritual festivo, so­bretudo, pela integração da criança no mundo e no trabalho dos adultos, fazendo-se coincidir a idade da emancipação social com a idade da eman­cipação biológica, por volta dos catorze anos; o modelo urbano não visa a autonomia dos indivíduos e menos ainda o desenvolvimento das suas po­tencialidades criadoras; procura sobretudo os jovens numa relação fami­liar e torná-los objectos de afectos serrados e, podíamos dizer, egoístas”.

Era frequente haver famílias com uma dúzia de filhos, ou mais, re­gistando-se um intervalo significativo entre os filhos mais velhos e os mais novos. As mulheres eram mães desde novas e muitas continuavam a ter filhos já na casa dos quarenta.

Até finais do século XVIII a mortalidade infantil ceifava cerca de um quarto dos nascidos antes de completarem um ano e apenas metade das crianças completava os 7 anos.

No século XIX e mesmo durante boa parte do século XX, a criança ocupava um lugar muito secundário na sociedade. Os cuidados e a preocu­pação que hoje rodeiam as crianças eram praticamente inexistentes naquela época. Muitas eram as que não sobreviviam após o primeiro ano de vida e as que conseguiam ultrapassar essa “barreira” etária, viviam uma infância e uma adolescência marcadas pela privação e a penúria.

A mortalidade infantil em Portugal do início do século XX estava entre os 210 e 240 óbitos por cada 1000 nascimentos. Se acrescentarmos a mor­talidade em idade juvenil, verificamos que uma parte significativa da prole nunca chegava à idade adulta.

A morte de uma criança era vista com alguma “naturalidade” e até com uma certa “frieza” da sociedade. Os cortejos fúnebres de “anjinhos” (crianças falecidas que eram colocadas em pequenos caixões brancos) eram frequentes, acompanhados pelos familiares, adultos e crianças.

É também no início do século XX que um conjunto de ilustres médi­cos, entre os quais se destaca o Dr. Ricardo Jorge, dão início a um conjunto de medidas tendentes à melhoria das condições sanitárias das populações, particularmente nos meios urbanos. É também nesta época que a caridade começa, lentamente, a ser substituída pela assistência pública e que se ve­rifica uma progressiva responsabilização do Estado em relação à sua função assistencial e de protecção dos cidadãos, nomeadamente das mães e suas famílias (Remoaldo, 1995).

A Freguesia de Gontinhães, apesar de bem servida de acessibilidades, continuava muito longe dos tais meios de assistência que existem em cida­des como Lisboa e Porto. As crianças e adolescentes continuavam entregues à sua sorte, indiferentes ao destino, agarrados à saia da mãe, brincando entre as masseiras e finalmente contribuindo para o sustento da família, que crescia a cada ano.

Desde 1879 que existia no Lugar do Santo, uma escola de instru­ção primária masculina, oferecida pelo benemérito António Manuel Alves do Rego, claramente destinada ao núcleo populacional mais interior e rural da freguesia de Gontinhães, deixando de fora o Lugar da Lagarteira (Nuceartes, 2011).

Um dos editoriais do Jornal “A Voz do Âncora” em 1904 dá voz à rei­vindicação de uma escola para a Lagarteira e para a inexistência de escola para o sexo feminino:

“Criação de uma escola do sexo masculino, exclusivamente destinada ao local tradicionalmente designado pelo nome de Lagarteira e subúrbios, bem como de escolas para o sexo feminino a par de cada uma para o mas­culino, de modo a ficarem servidas todas as freguesias de escolas para os dois sexos.”

Só depois da implantação da República em 1910, é que a educação teve mais atenção por parte dos Governos quando cria o Ministério da Instrução em 1913, em substituição da Direcção Geral da Instrução Pública.

Porém, o ensino obrigatório de três anos só é implementado em 1930 e iria vigorar para os rapazes até 1956 e para as raparigas até 1960. Posteriormente, passou a ser obrigatória a instrução primária de quatro anos.

Ora, as crianças da Lagarteira, inseridas numa comunidade com ca­racterísticas muito vincadas, de certa forma isolada, com a escola longe e sem compreender a necessidade da alfabetização e da instrução escolar, pouco valorizava esta questão, preferindo empurrar para o mar as crianças entre os sete e os dez anos de idade, contribuindo assim para o sustento familiar. Porém, as crianças não estavam impedidas de brincar em todas as oportunidades possíveis e trepar para as masseiras fundeadas no portinho após umas rápidas braçadas, era uma vitória sempre bem saboreada. É cla­ro que nada se comparava à aventura de remar a masseira até ao “Sabugo” e “encarrilhá-la” aproveitando a ondulação para fazer deslizar o barco à frente da onda. Esta proeza arriscada dava, em regra, direito a uns “cachaços”, logo que os atrevidos chegassem a terra, por parte do proprietário da embarcação ou dos progenitores.

Outra actividade das crianças era mariscar na “ribeira”, pescando bar­bos, “bretas”, lucinhas ou “cabritos” (cabozes) com uns equipamentos rudimentares; umas pequenas canas da Índia, uns restos de “sediela” (linha de nylon para pesca), por vezes emenda­da e um anzol eram tudo o necessário para uma pescaria. Para a chumbada, à falta do chumbo, servia um bocado de corrente de bicicleta, uma pequena pedra ou uma vela de automóvel.

Quando encontravam um bocado de ferro com a forma desejada, construíam à força de pancadas com um seixo um “bucheiro” para procurar polvos nas fragas durante a baixa-mar.

Outro divertimento consistia em construir pequenos barcos com “fo­lha-de-flandres”, a embalagem usada em determinados géneros alimenta­res como as chouriças ou as bolachas. Estas chapas metálicas eram disputa­díssimas e as crianças construíam pequenos barcos para depois navegarem junto aos molhes do portinho ou na foz do Rio Âncora.

De Verão, esta brincadeira, bem como a presença das crianças da classe piscatória, estava proibida na praia, havendo mesmo um zeloso cabo do mar sempre pronto a expulsá-las.

É deveras curioso como a Praia d’Âncora ganhou o epíteto de Praia das Crianças, e ainda hoje é assim conhecida, quando, simultaneamente, impedia que frequentassem a praia uma boa parte das crianças ancorenses, apenas pelo estigma de pertencerem à classe piscatória. Esta situação só se reverteu no final dos anos sessenta, início da déca­da de setenta.

56 - Equipa de futebol no Campo do Castelo - 1961.

Ao longo do século XX o futebol foi ganhan­do notoriedade e adeptos por todo o mundo e a La­garteira não foi excepção. O Campo do Castelo, rel­vado, amplo e acessível, era um local privilegiado para a prática do futebol, tendo por aquele espaço passado muitas gerações de praticantes, crianças e adultos.

As crianças organizavam grandes desafios, que ganhavam uma di­mensão especial se eram travados com rapazes de outros lugares da fre­guesia. Geralmente acabava o encontro com uma boa sessão de “pedrada”, que levou bastantes à botica do Lúcio, e mais tarde do Brito, para fazerem os imprescindíveis curativos às cabeças rachadas.

A ligação das crianças ao pai era geralmente de algum distanciamen­to, pois este estava muito tempo afastado do convívio com os filhos. O pescador local dormia a maior parte das vezes durante o dia para sair ao anoitecer ou deitava-se à tardinha para sair de madrugada. Quando chegava do mar tinha as redes para consertar e o tempo livre passava-o na taberna onde as crianças não tinham entrada.

A desvalorização da figura paterna é, contudo, compensada pela sobrevalorização da imagem do pescador, com o recurso frequente à memória dos feitos dos antepassados, em especial a figura do avô, com quem se conviveu na infância e que após o seu desaparecimento será transformado num herói mítico.

A criança cresce ouvindo histórias cheias de aventuras, em que o avô deu provas de coragem e de sacrifício, defrontando quer os poderes natu­rais, como o mar, quer defrontando os poderes sobrenaturais. Mas o passa­do em que ocorrem estas histórias remete para uma concepção do tempo, ao mesmo tempo histórico, porque são contadas como ocorrências vividas por figuras e lugares de que a comunidade guarda a memória viva; são, por outro lado, narradas como ocorrências passadas num tempo mítico, fora da história, “no tempo em que os animais falavam” ou “quando Deus andava pelo mundo”.

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O avô assume as­sim aos olhos da criança uma dimensão heróica, em tudo semelhante a uma figura lendária. Si­multaneamente a figura da avó fica indelevelmen­te ligada às superstições e outros códigos de con­duta perante o mundo e a sociedade, transmitin­do oralmente aos netos, tal como em tempos ti­nha recebido da sua avó (Trindade, 2008).

Para se tornar pescador, começavam geralmente muito cedo, porque praticamente não frequentavam a escola, passando a maior parte do tempo entre os barcos no porto, pescando ou mariscando nas rochas, explorando desde muito cedo o meio de subsistência que os aguardava.

Quando tinha sete ou oito anos, começava a aprendizagem, fazendo parte da tripulação no barco do pai ou de outro mestre. O seu trabalho como rapaz a bordo, consistia em manter a embarcação sempre limpa e aprovi­sionada. O único pagamento que recebia era o conhecimento do ofício e a possibilidade de pescar no barco. Com o passar do tempo, a criança trans­formava-se em homem e aos poucos ia melhorando o seu desempenho e cobrar o seu quinhão.

Apesar do seu trabalho no mar, o jovem desempenhava tarefas em terra, como limpeza e conserto dos aparelhos, ajudar a reparar avarias ou pintar os cascos, bem como transportar as redes, ir à lenha ou às pinhas e até tomar conta dos irmãos mais novos.

Este processo de aprendizagem era longo e custoso. O mar era a escola e o porto a casa da maioria destas crianças, dos povoados costeiros portugueses e galegos, quase até finais do século XX.

publicado por Brito Ribeiro às 12:13

A morte suscita em todas as sociedades reacções e sentimentos varia­dos e contraditórios, a angústia e o medo, a atracção do desconhecido, a dor e o horror do cadáver em decomposição, o receio no retorno do espírito do defunto, ao desejo que este, agora transformado em antepassado, seja uma protecção para os seus descendentes. Na maior parte das culturas, consi­dera-se que o cadáver constitui o suporte material do espírito. O primeiro desaparece com a morte, enquanto o segundo é imortal.

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Na comunidade piscatória a morte era sentida de forma dramática e angustiosa devido aos frequentes naufrágios. Se, pelo contrário, ela resul­tava de doença, faziam questão em se confessar, comungar e pagar alguma promessa por cumprir, ficando tranquilos com a regularização da sua vida espiritual.

Se a morte era repentina, a família do morto redobrava as missas e sufrágios, de modo a compensar a falta dele não ter regularizado em vida as suas contas com Deus (Graça, 1982).

Mais uma vez se reafirma a forte religiosidade desta gente que gere a sua vida em torno de uma fé inquebrantável, mas frequentemente deturpa­da pela falta de conhecimentos religiosos.

O morto é amortalhado com a sua melhor roupa e a sala é forrada com crepes negros, sendo erguido no centro de uma das paredes um altar sobre o qual se coloca uma cruz ladeada por quatro velas. Sobre a porta da casa prega-se um pano preto a informar quem por ali passa que há um mor­to a quem se deve uma oração. À volta do caixão, os familiares, vizinhos e amigos, fazem o velório, chorando alto e expressando as virtudes do finado. Durante a noite é servido aos presentes café, bolachas e aguardente, para se manterem despertos.

Os funerais na classe piscatória eram uma manifestação de dor, de solidariedade de classe e de indisfarçável pobreza de recursos. As famílias mais pobres empenhavam-se para custear o funeral ou realizavam-se pedi­tórios para pagar a urna.

A abrir o cortejo fúnebre, os estandartes das Irmandades das quais o falecido era “irmão”, seguido pelos meninos da Cruzada, vestidos com as opas de cores garridas, destoando estas entre o conjunto de vestimentas e semblantes carregados. Depois da urna, transportada por homens voluntá­rios que se revezam ao longo do caminho, coloca-se a família e a encerrar o cortejo todos aqueles que se associam a esta mani­festação pública de dor.

Quando falecia uma criança, os “anjinhos” eram inumados em pequenos cai­xões brancos e os funerais acompanhados por grande número de crianças, entre familiares e vizinhos.

À cabeceira das tum­bas colocava-se uma cruz de madeira com a marca do falecido ou do chefe de família, gravada com a ponta da navalha. Quando as campas passaram a ser identificadas com os nomes em placas de lousa, continuaram a desenhar as marcas nas costas destas, para que os membros da comunidade que não soubessem ler tivessem uma referência sobre quem estava ali sepultado.

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Se a morte acontece como consequência de um naufrágio, mesmo antes do cadáver aparecer, “deita-se” luto e pode-se rezar missa. É uma an­gústia enorme a juntar ao desgosto pelo falecimento, se o mar não devolve o corpo, pois o luto não é totalmente consumado até este ser devolvido à terra e feito o funeral.

A morte natural por velhice representa a nível humano a continuação do ciclo geral da natureza. Apesar das diferentes atitudes perante a morte, um dos aspectos a ter em conta é a preocupação de que todos os rituais sejam cumpridos na íntegra, de modo a garantir o descanso eterno depois de uma vida repleta de agruras.

O luto pelo familiar falecido era reconhecido pelo vestuário negro que passavam a usar e que no caso das mulheres, face ao falecimento do mari­do, nunca mais era aliviado. O homem podia usar uma braçadeira preta na manga do casaco.

O isolamento da classe piscatória era notório, havendo pescadores que apenas passavam para “o lado de cima” do caminho-de-ferro para acompa­nhar um funeral. Fora isso, a vida resumia-se ao seu bairro e ao “seu” mar.

Constatamos que na Guarda o cerimonial relacionado com a morte e o luto eram parecidos, existindo apenas uma diferença de vulto, pois existia uma Irmandade para a qual se pagava quota a partir dos 14 anos e que depois garantia as despesas do funeral. Esta Irmandade desapareceu por volta de 1965.

Ciclicamente, despontavam surtos de doença que provocavam picos de mortalidade na região. Quando atingia o estatuto de epidemia, afectava principalmente os grupos populacionais mais frágeis e desfavorecidos, como o da Lagarteira, que trabalhavam e viviam em condições de segurança e de higiene mais precárias.

Quer no século XVIII, com diversos surtos de tifo, quer no século XIX com os surtos de cólera que começaram por 1833 e se prolongaram até 1852 e que terá provocado cerca de 40.000 vítimas mortais, resultaram em falta de mão-de-obra, levando à escassez de cereais e ao aumento exponencial do preço destes, decorrendo situações de fome e pobreza, agravando as precárias condições de higiene e subnutrição.

Em 1895 uma epidemia de varíola varre Gontinhães, sendo 60,9% dos óbitos registados na zona litoral da freguesia. Especialmente nos me­ses mais quentes, as epidemias de varíola (popularmente designada por “bexigas”) e tifo ou difteria, atribuídas aos “maus cheiros” dos estrumes do patêlo, que por ali se costumava empregar como estrume, pelo que as autoridades administrativas ordenaram que este estrume depois de colhido no mar seja imediatamente enterrado a um pal­mo de profundidade (Rego, 2012).

O correspondente local de “O Jornal da Manhã”, diário portuense, em 16 de Junho de 1885, refere na sua crónica sobre Gontinhães:

“nesta freguesia há muito a fazer, particularmente no porto de pesca, e nas casas de alguns lavradores que, nada cuidadosos da sua saúde, têm as cortes dos gados vacum e suíno juntas ou por baixo dos aposentos em que habitam e dormem”.

Como os cadáveres eram inumados no átrio da Igreja e este já es­tivesse sobrelotado, o Governo Civil de Viana do Castelo exige à Adminis­tração da Câmara de Caminha que proceda de imediato à aquisição dos terrenos necessários à construção do cemitério. Esta delibera rapidamente e por unanimidade na compra 886 m2, mas será a Junta de Paróquia de Gon­tinhães a efectuar empréstimos e a lançar derramas para custear a obra, que se concluirá em 1897.

A propósito das Juntas de Paróquia, até ao Liberalismo, não há uma estrutura civil separada da estrutura eclesiástica. Com a reforma administrativa de 18 de Julho de 1835, surge a estrutura civil da Junta de Paróquia, autonomizada da estrutura eclesiástica. Com a Lei n.º 621, de 23 de Junho de 1916, as paróquias civis passam a designar-se freguesias (e a Junta de Paróquia passa a designar-se Junta de Freguesia), fixando-se assim a diferença entre a estrutura civil (freguesia) e a estrutura eclesiástica (paróquia).

Apesar de alguns surtos epidémicos de média dimensão no século XX, é a epidemia de gripe espanhola ou pneumónica, estirpe do vírus Influenza A, do subtipo H1N1, que terá vitimado entre 120.000 a 150.000 portugueses, de 1918 a 1920 e que vai marcar profunda­mente a sociedade portuguesa. Este surto de pneumónica ter-se-á iniciado junto das tropas aliadas no final do conflito mundial de 1914-1918 e rapida­mente se espalhado por todo o Globo com a desmobilização dos militares.

Embora estejam registados cerca de 8.000 óbitos no Distrito de Viana do Castelo, é provável que o número real de mortes seja sensivelmente o dobro do registado e o número de contágios em Gontinhães, incidia maioritariamente em residentes do Lugar da Lagarteira.

A partir do dia 4 de outubro surgiram inúmeros casos de marinheiros, grumetes, marítimos, remadores, fogueiros, barqueiros. Fica claro que es­tes indivíduos, ligados à atividade marítima, contaminaram os restantes elementos das respetivas famílias, surgindo posteriormente casos de in­ternamentos de peixeiras, criadas, jornaleiras e domésticas.

Assim, parece-nos evidente que esta primeira vaga de pneumónica teve origem, quer ao nível do concelho quer ao nível da paróquia, junto das comunidades marítimas, através de uma constante comunicabilidade com parceiros económicos portuários, em particular de origem galega. A ex­pansão da gripe, reportada pelo Provedor da Misericórdia, iniciou-se nas paróquias que mantinham maior contato com a raia fronteiriça e litoral (Caminha, Gontinhães, Seixas, Moledo, Cristelo), tendo alastrado poste­riormente para o interior do concelho.

Esta epidemia acabou por se propagar a outros setores da população, de tal modo que, afetando as demais atividades económicas, se repercutiu no volume da mão-de-obra, em particular afeta à produção agrícola. (Rego, 2012)

A Freguesia de Gontinhães e a classe piscatória em particular, bem como as freguesias próximas, tiveram nesses tempos difíceis, a ajuda abne­gada do Dr. Luís Ramos Pereira, que mesmo residindo em Lisboa, abandonou os seus afazeres para acorrer aos doentes contaminados com a pneumónica, na sua terra de adopção.

59 - Dr luis Inocencio Ramos Pereira.jpeg

Luís Inocêncio Ramos Pereira nasceu no Porto a 18 de Setembro de 1870 e formou-se em medicina e cirurgia na escola Médico-Cirurgica do Por­to em 1897, mas tinha as suas raízes em Riba d`Âncora, terra natal de seu pai José Bento Ramos Pereira, comendador e benemérito, que fez fortuna no Brasil. Desde muito novo que o Dr. Luís Ramos Pereira se apaixonou pelo ambiente marinho, pela náutica e pelos homens que, dia a dia, tiravam o sustento do mar, muitas vezes à custa da própria vida.

Militante do Partido Republicano Português, era Presidente da Comis­são Municipal de Caminha deste partido.

A sua ida para Lisboa no início de 1911 teve a ver com a eleição de de­putado à Constituinte, pelo círculo de Viana do Castelo, passando a também a exercer as funções de médico dos Caminhos de Ferro do Sul e Sudeste e, a partir de Novembro de 1910, as funções de administrador, por parte do governo, junto da Companhia do Niassa.

Luís Ramos Pereira, republicano, agnóstico e democrata convicto, exerceu o cargo de senador, para o qual foi sucessivamente eleito, até ao 28 de Maio de 1926, excepto durante o advento de Sidónio Pais. 103

Em 1918, com o surto da gripe pneumónica o Dr. Luís ao saber que a epidemia alastrava perigosamente no Vale do Âncora, abandonou Lisboa, hospedou-se na casa do amigo “Ramos Dentista” e durante meses, volun­tariamente e à sua custa, prestou a assistência possível aos doentes que diariamente eram infectados com tão gravosa doença. O “Ramos Dentista” como era popularmente conhecido, chamava-se António Maria Ramos e era morador na Rua 5 de Outubro, em frente ao cruzamento da Rua Celestino Fernandes

Enquanto senador da República teve sempre um papel de influência junto das ins­tâncias governamentais e foi graças a ele e a perseverança de mais alguns ancorenses, como o Dr. Laureano Brito e Pinheiro de Azevedo, que se conseguiu financiamento para construir a avenida marginal, a qual, mais tarde, teria o seu nome.

Mas outras obras e melhoramentos foram conseguidos com a sua influência junto do go­verno da República, como a abertura da delega­ção marítima em 1919, o salva vidas e o serviço de socorros a náufragos em 1913, o posto da GNR e a elevação de Gontinhães a vila em 8 de Julho de 1924.

Tal como o seu pai, também o Dr. Luís Ramos Pereira foi agraciado com a Comenda da Ordem de Cristo.

Faleceu em Lisboa a 24 de Julho de 1938 e foi sepultado por sua ex­pressa vontade em Vila Praia de Âncora. No cemitério local, a lápide tumular do seu jazigo de família, diz apenas, “Ramos Pereira entre amigos”.

publicado por Brito Ribeiro às 12:07

Porém, a vida continuava, o trabalho no mar era arriscado e as condi­ções do portinho eram más em matéria de segurança. Os acidentes ocorriam e as doenças não perdoavam. A situação mais complexa ocorria quando o falecido ou falecida deixavam filhos pequenos, filhos para “criar”.

3 - Artes em terra.jpg

Era normal distribuírem as crianças por outros familiares, a começar por aqueles que melhores condições tivessem para assumir o encargo de mais uma boca a alimentar.

A mulher viúva, que já tinha uma vida atarefada, quer na praia, quer em casa, tem de redobrar os esforços para conseguir pôr na mesa o susten­to dos filhos que ficaram com ela. A comunidade procura ajudar, ser solidária, mas o esforço maior é dela e dos filhos que lhe devem ajuda; na ribeira maris­cando ou pescando, no monte apanhando lenha, desempenhando pequenas tarefas que lhes permitisse ganhar alguma moeda ou uma simples merenda.

No caso de ser o homem viúvo, passado um período razoável de luto, é bem aceite a busca de uma nova companheira viúva ou solteira.

Desde o início do século XIX, até meados do século XX, os recasa­mentos de viúvos eram proporcionalmente tão numerosos quanto o são hoje em dia os casamentos de divorciados. A maior parte destes recasamentos envolvia crianças de um casamento anterior, pressupondo a existência de um padrasto, de uma madrasta ou de ambos na nova configuração familiar.

Quando era conhecida a intenção de um viúvo ou viúva casarem de novo, havia que “tocar o corno”, uma tradição muito antiga, que ocorria à noite, quando um grupo de rapazes, munidos de um corno de boi, fazia uma bela “serenata” perto da casa do visado. Se este ou esta surgiam ameaçado­res, fugiam, para logo recomeçarem noutro lado. Esta actividade repetia-se diariamente até que o alvo dos jovens se dispusesse a pagar uma merenda, ficando assim “sanado” o acontecimento. Esta velha tradição ainda hoje é praticada, principalmente nas aldeias.

publicado por Brito Ribeiro às 12:03

13
Mai 20

Também conhecida por “loja” ou “tasca”, era o local de sociabiliza­ção do pescador quando estava em terra. A do “Carriço”, da “Curraca” ou da Tilde, o “Coxo da Faena”, a “Raspa”, o “Pinga”, o “Alberto da Linha”, o “Tonica”, os “Tirones” ou o “Caça-Brava” que antes era o “Russo”, o “Repimpim”, mais tarde a “Santola” no largo da “Rasga”, são algumas das tabernas da zona do Portinho ancorense que existiram ou ainda existem na actualidade.

A maioria das tabernas eram pequenas lojas de aspecto simples e humil­de, tal como os seus clientes, onde se vendiam poucos produtos, vinho tinto e branco, aguardente, ginja e o tabaco. Para além destes havia bolachas, figos, azeitonas, chocolate e por al­tura das festas alguns petiscos.

O arranjo da loja era simples e o peteiro da Santa (Senhora da Bonança) ocupa­va um dos cantos. Podia ha­ver uma pequena prateleira (ou nicho) com uma imagem religiosa e uma pequena lam­parina de azeite. Na parede do fundo, por trás do balcão, sobre as prateleiras, encon­travam-se os artigos para venda. Ao lado do balcão, os dois pipos de vinho; numa prateleira próxima, as canecas, malgas, medidas para o vinho, o funil e os copos da aguardente, da ginja e do “traçadinho”, uma mistura de aguardente e anis.

76 - Casa antiga onde funciou a loja da Curraca.JP

No exterior do balcão, as paredes estavam decoradas com um progra­ma das festas da Senhora da Bonança, um calendário e pequenos avisos, como a lista dos nomes da mordomia para a festa da Padroeira ou do Senhor dos Aflitos. Podia encontrar-se ainda algum apetrecho de pesca pendurado, pertença do proprietário da taberna, também ele, muitas vezes, pescador. A um canto eram arrumadas redes e cortiças. No exterior do balcão, as mesas e bancos toscamente executados, onde os clientes se sentavam a beber, a conversar ou a jogar às cartas.

No exterior da taberna, um galho de loureiro preso à parede, anuncia­va que aquele era um local de venda de vinho.

A porta da taberna tinha um postigo que servia para entrar a luz ex­terior. Se era insuficiente, utilizavam uma mecha de pano e algodão torcido, envolvida em óleo de resíduos de peixe a que davam o nome de “graixa”, vertida numa candeia metálica bastante primitiva. Mais tarde, estas can­deias foram substituídas pelos candeeiros a petróleo.

Por meados do século XX algumas lojas diversificaram o negócio, pas­sando a comercializar artigos de mercearia, embora num espaço separado da taberna.

Era na taberna que o pescador ancorense convivia, vendo passar os dias chuvosos, lamentando a invernia que era longa e lhes trazia miséria, obrigando-os a irem à lenha para vender, pedirem emprestado aos mais re­mediados e até calcorrearem os lugares e freguesias rurais pedindo esmola e comida nas casas dos lavradores.

A maior parte do tempo, o pescador bebia a crédito, que liquidava quando fazia as contas da maré. O proprietário da loja mantinha um livro de fiados, que nos tempos mais antigos identificava o devedor com a sua marca e os débitos com outros símbolos que representavam quantidades de dinhei­ro, vinténs, tostões ou coroas. Quando podia liquidar a dí­vida, o pescador dava-se ao “luxo” de comer meia dúzia de figos, um punhado de azeito­nas ou outra iguaria disponí­vel na loja. Facilmente se co­metiam exageros e não raras vezes o pescador saía da ta­berna com “um copo a mais”.

Quando o mar permi­tia, a pesca abundava e o dinheiro não faltava, lá iam beber a malga de vinho com outra disposição, conversar sobre aventuras passadas, sobre a última pesca ou dos planos futuros.

O pescador frequentava a taberna logo de manhã para “matar o bi­cho” com aguardente ou traçadinho, que na ausência de comida lhe dava força e coragem para vencer as dificuldades da faina. Alturas houve em que, por proibição das autoridades, o taberneiro vendia a aguardente às escondi­das, na areia, junto aos barcos.

76A - Loja da Tilde.jpg

As tascas do Portinho eram, amiúde, local de encontro de tocadores de concertina, viola ou guitarra que pertenciam à comunidade ou de alguma freguesia próxima. A sua presença nestes locais fazia correr a bebida e dava lugar a cantorias.

A vida do pescador ancorense era dura e bastante isolada, não só pela delimitação do seu território (para baixo da linha do caminho de ferro), mas também por razões de ordem sócio-cultural. Por isso mesmo, frequente­mente, não era bem entendida a permanência do pescador na taberna por parte da restante comunidade de Gontinhães. O Jornal da Manhã, do Porto, publicava a 6 de Dezembro de 1885, pela pena do correspondente na Praia d’Âncora:

 “Os pescadores estão a atravessar uma quadra bastante penosa, porque houve muito pouca pescaria no verão, e agora não há nenhuma.

Entretanto, esta classe tão imprevidente, como amiga de beber, não dei­xa, ainda assim, de frequentar as suas “capellas”, as tabernas, onde gasta o que tem e o que não tem”.

Esta era a forma como a comunidade rural e a burguesia recentemen­te instalada na Lagarteira, onde construíram as suas casas para comércio ou serviços, assim como habitações de férias, se referiam à classe piscatória e à sua forma ímpar de viver.

publicado por Brito Ribeiro às 11:27

01
Mai 20

Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais, nasceu no dia 1 de Maio de 1872 em Caminha e quando exercia a Presidência de Portugal, foi assassinado no dia 14 de Dezembro de 1918 por José Júlio da Costa, um ativista da esquerda republicana.

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Na política, Sidónio Pais, exerceu as funções de deputado, ministro do Fomento, ministro das Finanças, embaixador de Portugal em Berlim, ministro da Guerra, ministro dos Negócios Estrangeiros, presidente da Junta Revolucionária de 1917, presidente do Ministério e presidente da República Portuguesa.

Exerceu a Presidência de forma ditatorial, suspendendo e alterando por decreto normas essenciais da Constituição Portuguesa de 1911. Foi popularmente cognominado o presidente-rei.

Quando em 1918 ocorreu uma greve dos trabalhadores rurais no Vale de Santiago, José Júlio da Costa assumiu a posição de negociador entre as autoridades e os grevistas, alcançando um acordo. A atuação daqueles trabalhadores, liderados pela ala anarquista da Comuna da Luz de António Correa, foi considerada perigosa para a ordem pública, não aceitando o Governo os termos do acordo, sendo os grevistas severamente punidos e alguns deportados para África.

Sentindo-se traído pela falta de palavra das autoridades, Costa jurou vingar os seus conterrâneos do Vale de Santiago, decidindo assassinar Sidónio Pais, visto então pela esquerda radical como o ditador cuja ação era a fonte da opressão das classes trabalhadoras e como o traidor que abandonara à sua sorte o Corpo Expedicionário que combatera em França.

Costa deslocou-se de Garvão, no Baixo-Alentejo, até Lisboa, com o objetivo de acabar com o regime sidonista, pondo termo à chamada República Nova, assassinando o seu líder. A ação foi cuidadosamente preparada, como indica uma carta escrita por ele mesmo em 12 de Dezembro.

No dia 14 de Dezembro, após jantar no restaurante Silva no Chiado, dirigiu-se à Estação do Rossio, onde aguardou a chegada do chefe de Estado que deveria partir rumo à cidade do Porto. Quando Sidónio Pais se preparava para o embarque, no primeiro andar da estação, Costa furou o duplo e compacto cordão policial ao mesmo tempo em que disparava uma pistola sobre o presidente, que mal tem tempo de reagir. Sidónio Pais ainda faz um gesto, na intenção de sacar o revólver que trazia no bolso esquerdo do capote militar. Porém, um segundo tiro acerta-lhe em cheio e fá-lo cair no limiar da porta que procurava transpor.

É tudo tão rápido que só por mero acaso o autor dos disparos foi preso no local. Na infernal confusão, a Polícia e a Guarda investiram indiscriminadamente, distribuindo coronhadas ao acaso e desencadeando um furioso tiroteio, que atinge tudo o que está perto.

Fugia-se em todas as direções, para escapar às espadas, aos sabres e aos disparos que não diferenciam ninguém na sua fúria vingadora. Uns refugiam-se nos comboios, outros escondem-se dentro do túnel da estação e outros, ainda, metem-se entre os fardos de bagagens e de mercadorias acumulados no cais. O próprio irmão do presidente é acutilado, no meio de todo este pandemónio. Um convicto sidonista, de nome Luís Furtado Saraiva, caixeiro de profissão, é abatido no local, e além de Sidónio Pais, são ceifadas pelas armas das forças de segurança várias vidas.

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No chão, Sidónio Pais agonizava, perante os esforços infrutíferos do capitão Carneira, que tenta, a todo o custo, salvar a vida do presidente, protegendo-o com o seu corpo do tiroteio a que se assiste.

Sidónio já não assistirá à gala que a recepção oficial se preparava para lhe oferecer no Teatro Sá da Bandeira, no Porto, e tão-pouco estará presente na parada militar que em sua honra desfilaria pela Avenida da Boavista.

Ao coro de Gounod a duas vozes, que vinte e cinco damas da primeira sociedade, com acompanhamento de órgão, harpa, violino e violoncelo, se aprontavam para lhe dedicar, no sarau musical oferecido pela Associação Comercial do Porto, também o presidente não dará já o contributo da sua presença física.

José Júlio da Costa, um alentejano que quase ninguém conhecia, acabara de o assassinar. Moribundo, o “presidente-rei” jazia na laje da estação que tantas vezes o recebera em delírio e que se transformara, agora, num verdadeiro inferno.

Alheio a este diabólico tumulto que o cerca, o capitão Carneira tenta erguer o corpo ensanguentado do presidente e, com o auxílio de Ferreira da Silva e de António Miguel Sousa Fernandes, mete-o no carro que o motorista José Felício Franco conduz rapidamente na direção do Hospital de S. José.


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Casa onde nasceu Sidónio Pais, adquirida pela Câmara Municipal de Caminha e entretanto demolida

Sidónio Pais chegará já morto ao hospital, onde o médico Torres Pereira praticamente se limita a certificar o óbito.

A autópsia dirá, mais tarde, que as lesões sofridas pelo presidente eram forçosamente mortais. Ferido no lado direito da região mamária, com perfuração do pulmão direito e derrame hemático peritoneal, Sidónio Pais não podia ter mais de 15 a 20 minutos de vida.

Apesar da enorme confusão que se instalou, e de que resultaram quatro mortos, José Júlio Costa, não tentou fugir, deixando-se capturar.

Embora não existam provas convincentes, sempre circularam teses que apontavam para o envolvimento da maçonaria na preparação do assassinato de Sidónio, alegando-se que Costa estaria ligado àquela sociedade secreta.

Apesar dos rumores, próprios de uma época em que a maçonaria estava sob forte ataque por parte dos círculos mais conservadores, sabia-se que Costa nutria grande simpatia pelo grão-mestre Sebastião de Magalhães Lima. O grão-mestre em carta enviada a um correligionário, afirmou ter mantido contacto com Costa, mas “achou-o muito doente, receando mesmo pela sua vida que tão preciosa é a esta nossa tão amada terra”.

Carecem de prova os rumores de que teria escrito uma carta a Magalhães Lima, que, sem mencionar o pretendido assassinato, teria sido encontrada nos bolsos do grão-mestre quando foi preso e conduzido ao calabouço na noite do assassinato.

Um dos argumentos apontados pelos defensores desta tese é o facto de Sidónio ter sido maçom, alegando-se que a maçonaria não perdoaria que os seus antigos membros abandonassem a organização, criando desse modo o mito que Sidónio teria sido morto por outro maçom.

Outro motivo que apontava a cumplicidade da maçonaria na morte do presidente era o conhecido apoio dado pela maçonaria à República e aos republicanos que Sidónio vinha traindo e perseguindo. Tal sentimento tinha levado a uma radicalização de posições, com os defensores do sidonismo a acusar a maçonaria de estar por detrás do atentado fracassado que sofrera em 5 de Dezembro. A reação antimaçónica levara a que no dia imediato, a 6 de Dezembro, a loja do Grande Oriente Lusitano Unido fosse invadida e saqueada.

A tese de que José Júlio da Costa pertencia à maçonaria jamais foi confirmada, apresentando-se como pouco provável pois aquela era uma organização elitista e urbana, onde um militar de baixa patente dificilmente entraria.

No caso de Costa fazer parte de alguma associação secreta, o que não seria de estranhar devido ao seu empenho político, provavelmente pertenceria à Carbonária, um movimento bem mais radical, com forte implantação nas áreas rurais e entre praças e sargentos das forças armadas. Contudo, desconhecem-se ainda hoje, provas da ligação de José Júlio com qualquer associação secreta.

José Júlio da Costa faleceu em 1946, aos 52 anos, internado no Hospital Miguel Bombarda, depois de 28 anos preso, sem direito a julgamento.

 

Texto adaptado dos blogs: https://estoriasdahistoria12.blogspot.com e https://aviagemdosargonautas.net 

publicado por Brito Ribeiro às 11:49
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