Ambiente, história, património, opinião, contos, pesca e humor

18
Abr 15

Encontrei no Facebook uma referencia ao Catitinha, um homem enigmático, despontando na memória dos mais velhos, que o recordam a percorrer as praias e a falar com as crianças. Nunca soube de onde vinha, para onde ia, sabia apenas que pernoitava na casa da Dona Titó. Deixo-vos o link onde podem conhecer mais alguma coisa sobre esta personagem extraordinária e um pequeno conto que escrevi no verão de 2012, publicado no quinto volume da colectânea de prosa e poesia "A Arte pela Escrita " da editora Mosaico das Palavras.

 

O Cruzado

CATITINHA-.jpg

A sombra deslizou sobre o meu castelo de areia, imobilizando-se sobre o barquinho de folha-de-flandres, que noutra vida acondicionara chouriças. Endireitei-me, pisquei os olhos doridos pelo violento contra luz. A manhã de estio quase a terminar, o sol no apogeu, dizem hoje ser perigoso para a derme. Nesse tempo não se pensava nisso, o sol tinha melhores humores.

A sombra projetada no meu reino do faz de conta, representava a silhueta de um homem de longa barba branca que se agigantava sobre mim, observando o motivo da minha concentração.

Por um instante fiquei convencido que o Pai Natal tinha descido à praia. Tirou o chapéu de palha de aba larga, enxugou o suor da testa com um lenço grande e voltou a cobrir-se. O areal apinhado de crianças, uns vigiados por mães e amas; outros, habituados desde sempre à “praia das crianças”, livres de tantos cuidados, que se bastavam a si próprios, apenas à hora em que a fome apertava regressavam à penumbra do lar.

O homem confiava a barba com um sorriso triste, distante. Aproveitei esse momento para melhor observar o amarrotado fato de linho branco. Calças arregaçadas, à pescador, deixavam a nu os pés grandes e os joanetes salientes. Olhos azuis, vivos, saltitavam a cada movimento que eu fazia. O cabelo caia em cachos para fora do “palhinhas”, sobre os ombros, aconchegando-se à gola do casaco do qual não destoava a cor.

Repentino, desinteressou-se, deu-me as costas e continuou caminho, calcorreando a areia escaldante até ao próximo grupo de catraios que sonhavam com o castelo dos mouros, entre pás e baldes de plástico que serviam de forma aos torreões inexpugnáveis.

“É o senhor Catita”, “o Catitinha”, “que pena, parece que lhe morreu um filho”, “um filho, um bebé, coitado, ficou assim”.

Para nós era apenas o Catitinha, o homem que velava pelas crianças na praia. Ano após ano, surgia do nada com a missão de assegurar aos outros o que não conseguira evitar a si próprio.

Um cruzado de armadura branca, que ia e vinha sem dar satisfação, respondendo apenas perante o seu desígnio. Um ano, o verão começou sem o Catitinha. Teria o sol adiantado o seu horário, a sardinha abalado para outro portinho, estaria agora na companhia do filho que tanto amara? Não soubemos, mas a praia nunca mais foi a mesma.

publicado por Brito Ribeiro às 09:17
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