Da autoria do historiador Paulo Torres Bento, publicado pelo caminha@2000, este artigo revela a iniciativa e o empenho de alguns ancorenses em prol da sua terra.
Principal atração das Festas de Nossa Senhora da Bonança que, anualmente, desde 1883, se realizam em Vila Praia de Âncora nos primeiros dias de setembro, nem todos sabem que a procissão naval da Senhora da Ínsua foi somente introduzida no programa da romaria em 1960. Serão contudo ainda menos aqueles que têm conhecimento que, muitas décadas antes, no ano de 1909, nos derradeiros tempos da Monarquia, um grande evento náutico, profano e desportivo, integrou a festa maior ancorense. Uma regata de barcos à vela e a remos, da qual deu então extensa notícia o jornal vianense Vida Nova:
"A regata em Âncora — Promete ser uma festa muito distinta a regata que amanhã [12 de setembro] se realiza em Âncora, promovida pelo núcleo da Junta Local da Liga Naval Portuguesa daquela localidade marítima. A interessante diversão inicia-se à 1 hora da tarde, com o seguinte e definitivo programa:
1ª corrida — À vela — baleeiras do "Bérrio" — 1º prémio, objecto de arte; 2º, medalha de vermeille da Liga Naval.
2ª corrida — À vela — Barcas de 24 palmos de quilha — 1º prémio, 10$000 réis e medalha de cobre da Liga Naval; 2º prémio, 5$000 réis.
3ª corrida — Barcos pequenos de 19 palmos de quilha — 1º prémio, 10$000 réis e medalha de cobre da Liga Naval; 2º prémio, 5$000 réis.
4ª corrida — Barcos pequenos de 19 palmos, a remos — 1º prémio, 10$000 réis e medalha de cobre da Liga Naval; 2º prémio, 5$000 réis. (...)
O espaço a percorrer pelas embarcações à vela e a remos tem a forma de um triângulo, estando ao centro
fundeado o rebocador "Bérrio". Na primeira corrida tomam parte as baleeiras deste vapor, que são timonadas pelos seus ilustres oficiais. O júri é presidido pelo sr. A. Pereira de Matos, brioso oficial e comandante da "Bérrio", fazendo parte do mesmo o sr. conde de Villas Boas e outros cavalheiros cujos nomes acima damos.
Nas balizas permanecerão, como medida preventiva em caso de desastre e ainda para fazer a respectiva fiscalização, os barcos salva-vidas desta cidade [Viana] e de Caminha, e a lancha a vapor "Infante D.Manuel", em serviço no rio Minho. Nas baterias do forte daquela praia haverá um recinto reservado para as pessoas que, comodamente, quiseram assistir à distinta diversão. Custa a entrada 120 réis.
Para o brilhantismo da regata muito tem trabalhado o nosso amigo e distintíssimo clínico sr. dr. Luís I. Ramos Pereira, muito digno vice-presidente da Junta Local [da Liga Naval Portuguesa] daquela vizinha e linda praia do norte. Terminada a regata, formar-se-á uma flotilha com todos os barcos que nela entrarem, a qual acompanhará o júri ao portinho de Âncora, onde se fará o desembarque. A distribuição dos prémios faz-se após a instalação solene da Junta Local da Liga Naval, como consta do programa acima publicado. Sabemos que desta cidade [Viana] vão amanhã ali muitas das mais distintas famílias, afim de presenciarem o alegre festival marítimo." (Vida Nova, 11-09-1909).
São diversos os pormenores relevantes deste texto mais que centenário, a começar pela promotora do evento náutico — a Liga Naval Portuguesa —, organização que havia sido fundada em 1901 para defender o ressurgimento marítimo nacional e pugnar pelo reforço da Marinha de Guerra, muito graças ao empenho do Segundo-tenente António Alves Pereira de Matos (1874-1930), o mesmo oficial que agora assumia o comando do Bérrio. Não surpreende pois ser este o navio que prestava apoio na Praia de Âncora à regata, nela participando com as suas baleeiras e guarnição de 68 homens — o Bérrio era um rebocador, com o deslocamento de 498 toneladas e o comprimento de 40,50 m, que atingia a velocidade de 10 nós, garantidos por uma máquina a vapor de 1070 HP.
A componente ancorense da organização, por sua vez, era assumida pela Junta Local da Liga Naval na Praia de Âncora — umas das 62 criadas em todo o país —, cuja instalação se celebrava com esta regata, onde se destacava o nome do médico e político Luís Inocêncio Ramos Pereira (1870-1938), à época clínico camarário e presidente da Comissão Municipal Republicana de Caminha. Podemos ainda considerar local a participação da lancha-canhoneira Infante D. Manuel, que fazia a fiscalização no rio Minho, bem como dos bombeiros de Viana de Castelo e dos barcos salva-vidas de Viana e Caminha.
Também com interesse é a notícia saída na edição seguinte do Vida Nova, com o relato e os resultados da regata a revelarem a participação do próprio Luís Ramos Pereira — os desportos náuticos eram a sua paixão e chegou a ter um barco à vela na Praia de Âncora, a "Gaivota" — que mereceria até um prémio:
"No sábado, a regata que se efectuou sob os auspícios da Junta Local da Liga Naval da Praia de Âncora, esteve bastante animada, não se dando o menor desastre.
Pelas 11 horas e meia levantou ferro o "Bérrio", que fora da nossa barra [Viana] fundeou afim de receber o piquete de Bombeiros Voluntários (...). Às 2 horas da tarde iniciou-se a regata. Nas margens e nas baterias do forte, onde se viam muitas senhoras da colónia balnear, foi grande o número de pessoas que assistiu ao decorrer da esplêndida festa desportiva, que deu o seguinte resultado:
1ª corrida, à vela, baleeiras do "Bérrio" — 1º prémio, objecto de arte, ao sr. António Alemão Cysneros, imediato deste barco de guerra; 2º prémio, Medalha de vermeille, ao sr.dr. Luís Ramos Pereira.
2ª corrida, à vela, profissionais — 1º prémio de 10$000 réis à lancha "Santa Margarida"; 2º, de 5$000 réis à lancha "Laurinda".
3ª corrida, barcos pequenos — 1º prémio de 10$000 réis a Manuel Vasconcelos; 2º, de 5$000 réis, a Ezequiel Presa; 3º, de 2$500 réis, a Alfredo de Vasconcelos.
4ª corrida, barcos a remos — 1º prémio de 10$000 réis à lancha nº 1614 de Manuel Vasconcelos; 2º, à barca nº 81 de Ezequiel Presa." (Vida Nova, 14-09-1909).
Enfim, apetece imaginar que um menino, então com apenas 8 anos de idade, exultou naquela tarde com a
perícia náutica exibida pelo pai, aí se começando a definir a sua inclinação para a carreira profissional que o honraria no futuro. No ano em que se celebram os 40 anos do falecimento do Almirante Jorge Ramos Pereira (1901-1974) — e do 25 de abril, pelo qual tanto lutou e, ingloriamente, perdeu por dias — que melhor homenagem se podia prestar aos Ramos Pereira, pai e filho, do que (re)introduzir no programa das Festas de Nossa Senhora da Bonança uma grande regata desportiva que contasse com a participação da Marinha e de clubes náuticos da região, voltando a preencher de velas içadas ao vento o largo horizonte da baía da Praia de Âncora?
REFERÊNCIAS
Alexandre H. S. Rodrigues. Traços biográficos (em prosa bárbara) do Dr. Luís Inocêncio Ramos Pereira e de seu pai José Bento Ramos Pereira (testemunhos e documentos). Composto e impresso na Gráfica da Casa dos Rapazes, Viana do Castelo, 1970.
Glória Maria Marreiros. Almirante Jorge Ramos Pereira — Uma vida, um exemplo. Livros Horizonte, 2001.
Joaquim Bertão Saltão. Memorial — Liga Naval Portuguesa. Revista do Clube de Oficiais da Marinha Mercante. Nº84, janeiro/fevereiro de 2008, pp.5-9.
António Silva Ribeiro. Mahan e as marinhas como instrumento político. Revista Militar. Nº2500, maio de 2010, pp.465-483.
Agradecemos ao Rafael Capela as informações sobre a Festa da Senhora Bonança e a disponibilização da imagem do programa das festas de 1960.