Um homem, uma ideia
O primeiro festival realizado em Vilar de Mouros aconteceu no longínquo ano de 1937, a 26 de Setembro e designava-se “Festival Infantil” que teve a participação da Banda Pitagórica Infantil Vilarmourense, uma zarzuela pelo Grupo Cénico Infantil, fogo-de-artifício vindo da Freguesia vizinha de Lanhelas, bazar de prendas, trabalhos regionais gentilmente oferecidos por habilidosas raparigas da terra e muitas barracas de comes e bebes (Zamith, 2003).
Em 1965 o médico Vilarmourense António Augusto Barge organizou um evento cuja intenção era a divulgação da música popular do Alto Minho e da Galiza e transformar Vilar de Mouros num destino turístico. Como conta Carlos Alves, ex-Presidente da Junta de Freguesia, "toda a população tinha-lhe imenso respeito, até porque era conhecido como médico dos pobres". Exercia em Lisboa, mas sempre que chegava a Vilar de Mouros, a sua casa "tornava-se num consultório, no qual ajudava os mais carenciados" (Alves C. , 2009), daí a estima que granjeou no povo, que o recorda como o homem que colocou a aldeia no mapa.
Em 1968 repetiu o festival onde reuniu a Banda da GNR, Zeca Afonso, Carlos Parede, Luís Goês, Adriano Correia de Oliveira, Quinteto Académico+2, Shegundo Galarza e alguns grupos folclóricos. Estima-se que assistiram a este festival cerca de quinze mil pessoas, repartidos por três dias.
Entusiasmado com a receptividade, este homem de ideias largas e inovadoras, sonhou com um grande evento musical que pusesse a sua pequena Freguesia nas bocas do mundo. Como dizia o Dr. Barge “fazer turismo é uma arte que, para bem se processar, apenas exige colaboração e espiritualidade. O resto temos nós” (Paço, 1971).
Com a experiência adquirida e com o auxílio de uma pequena mas voluntariosa equipa que comungava os mesmos ideais, lançaram-se na organização de algo que nem eles sabiam muito bem, de início, como iria desenvolver-se. Esta ideia demorou três anos a realizar-se e a imaginação era o limite.
As primeiras bandas a serem equacionadas foram os Beatles, Rolling Stones e Pink Floyd. Os Beatles com um cachet de 1000 contos acabaram por se separar antes da contratação e os Rolling Stones, Pink Floyd e outros como Moody Blue ou Cat Stevens não tinham datas disponíveis. De referir que este Festival começou a ser pensado e organizado antes de Woodstock, que viria a acontecer em 1969.
Depois de alguma indefinição acabou por ser contratado Elton John, por 600 contos e os Manfred Mann que terão custado pouco mais de cem contos.
Alem dos grupos ingleses estavam contratados os portugueses Quarteto 1111, Pentágono, Sindikato, Chinchilas, Contacto, Objectivo, Bridge, Beartnicks, Psico, Mini-Pop, Pop Five Music Incorporation, Amália Rodrigues, Duo Ouro Negro, Celos, Banda da GNR, Coral Polifónico de Viana do Castelo e o Grupo de Bailado Verde Gaio (Zamith, 2003).
O movimento hippie
O movimento hippie nasceu na América em 1966; pacifista, defendia o fim de todas as guerras e empenhou-se activamente contra a guerra do Vietname, a sociedade de consumo e o poder capitalista.
O traje dos seguidores deste movimento (Stabile, 2009) era composto por jeans com boca-de-sino, túnicas indianas unisexo muito coloridas, associado ao gosto pela cultura psicodélico e ao uso de substâncias alucinogénicas.
As roupas eram geralmente estampadas com símbolos do movimento, amor, paz, flores e motivos orientais, especialmente aqueles ligados ao hinduísmo. Homens e mulheres usavam cabelos longos, apartados ao meio, reflexo da imagem tradicional de Cristo. Os sapatos e bolsas tinham geralmente aspecto artesanal, próprio de uma cultura não industrializada e valorizavam-se os adornos de origem folclórica.
No final dos anos sessenta, os anteriores ídolos como James Dean e Elvis Presley são substituídos pela rebeldia política de Gue Guevara e o firmamento de novas estrelas que usavam e abusavam de drogas como Jimi Hendrix, Jim Morrison ou Jane Joplin.
Representam as duas maneiras de estar, de viver e até de morrer, na luta contra o capitalismo ou sob o efeito das drogas. Estes dois ideais desenrolavam-se em paralelo, a revolução política e a revolução cultural, propondo-se em qualquer uma delas transformações comportamentais.
Três fins-de-semana que mudaram a história
O Festival de Vilar de Mouros decorreu (Zamith, 2003) durante três fins-de-semana entre 31 de Julho e 15 de Agosto de 1971. O primeiro foi dedicado a um público mais erudito com a actuação da banda da GNR e música clássica com coral e dança, o segundo foi orientado para os jovens e foi este o momento marcante, enquanto no terceiro fim-de-semana actuaram a Amália Rodrigues e o Duo Ouro Negro para um público diferente, mais conservador e burguês, que até assistiu ao espectáculo sentado em cadeiras dispostas no grande Largo do Casal.
No primeiro dia de Festival, a 31 de Julho aconteceu a primeira audição mundial da cantata “D. Garcia”, com poemas de Natália Correia e David Mourão Ferreira, música de Joly Braga Santos tendo como solista a soprano Elisette Bayam.
No dia 1 de Agosto actuou a Banda da GNR dirigida pelo maestro Silva Dionísio que tocaram peças de Tchaikowsky, Chostakovitch, Gimenez, Gershwin, Oswaldo Cabral e Duarte Pestana. À noite Vitorino d’Almeida interpretou a “Fanfarra de Richard Strauss” e uma tocata de piano, nº1, opus 23 (si bemol menor) de Tchaikowsky em três andamentos. Na segunda parte foi interpretada a “Sinfonia Concertante” (estreia mundial) de Vitorino d’Almeida com Olga Pratts, Quinteto de Sopro, banda, coro e estereofonia de percussão com o Grupo de Zés Pereiras de Baião (Imperadeiro, 1971).
O pouco público presente (entre mil a mil e quinhentos espectadores no total) aplaudiu, mas a crítica foi particularmente severa com “D. Garcia”. O compositor não se sentiu muito estimulado, o que a música claramente revelou. No contexto da evolução criadora de Joly Braga Santos esta cantata representa um passo atrás do ponto de vista da linguagem musical (Carvalho, 1971).
Claramente decepcionado e desapontado com a ausência quase total das gentes do Concelho, Vitorino d’Almeida refere (Imperadeiro, 1971): “O Concelho de Caminha é de facto muito pobre de cultura. Mas esta não se forma de um dia para o outro, nem nasce por geração espontânea na cabeça de cada pessoa”.
No entanto e como já referi, o grande cartaz do Festival estava centrado no segundo fim-de-semana onde iriam actuar os grupos de “Música Moderna para a Juventude” e que atraiu uma verdadeira multidão à pequena aldeia do sopé da Serra d’Arga.
A organização teve o cuidado, inédito, de distribuir pela região norte, umas pequenas tarjas onde apelava aos automobilistas para darem boleia a quem se deslocasse ao festival e contratualizou com a CP um conjunto de comboios extraordinários entre as estações de Lisboa até ao Porto e ligação a Caminha.
Rapidamente as estradas encheram-se de jovens vestidos de forma extravagante, cabelos compridos, carregados com mochilas e outros haveres transportáveis. O trânsito automóvel entre Caminha e Vilar de Mouros esteve parado durante horas e a aldeia transformou-se de repente num enorme acampamento e numa confusão indescritível. Os terrenos reservados pela organização para acomodação dos campistas foram-se transformando em parques de estacionamento de automóveis, que não tinham sido previstos e todos os cantos serviam para montar uma tenda ou apenas um simples toldo.
As margens do Rio Coura desapareceram debaixo do colorido das lonas das tendas, a paisagem transformou-se por completo e milhares de jovens vestidos descuidadamente com longas túnicas coloridas, uns descalços, quase todos de cabelos compridos e desgrenhados invadiram pacificamente Vilar de Mouros. Nos locais de maior confluência alguns hippies vendiam artesanato típico do movimento e que atraia muitos curiosos.
Refere a imprensa local (Paço, 1971) “Num ambiente de autentica camaradagem que milhares de jovens, moços e moças das mais variadas camadas sociais, desde universitários a simples trabalhadores se misturaram e confundiram, uma confraternização informal e anónima com milhares de hippies estes trajando vestimentas exóticas e extravagantes, ostentando com o seu modus vivendi, os ares mais insólitos e excêntricos, que se possam imaginar… Eram jovens e, quando se é jovem sente-se nas veias, o resfolegar de um sangue irrequieto e o desejo ardente de JUSTIÇA, de AMOR, de LIBERDADE e de PAZ”.
A população assistia apreensiva mas curiosa a esta invasão exótica de portugueses e de muitos estrangeiros que pareciam não ter qualquer problema de inter-relacionamento nem de comunicação. O movimento hippie era internacional, pacifista e demonstrava-o na prática.
Durante todo o Festival não houve registo de qualquer incidente ou altercação e a segurança esteve a cargo de um pelotão de 45 elementos da GNR do Porto e de alguns elementos da DGS que não chegariam a uma dúzia, que protagonizaram uma cena anedótica ao confundirem a soprano Elisette Bayam com uma imigrante clandestina. As forças da GNR tiveram uma actuação pautada pela discrição pois nem sequer estavam à vista, optando por acantonarem, em estado de prontidão, numa residência perto do Largo do Casal.
Não há números exactos, nem sequer aproximados de quantos espectadores assistiram a este evento musical. Perto de vinte mil neste fim-de-semana, talvez na casa dos vinte e cinco mil no cômputo geral dos três fins-de-semana.
Poucas horas passaram e os géneros alimentícios esgotaram nas duas ou três lojas locais, havendo muita gente que nem dinheiro tinha para comprar o que quer que fosse. Os campos de milho e as hortas começaram a ser visitados e no final do Festival pode-se mesmo dizer que a maior parte deles estava com as culturas dizimadas, apesar da população de uma maneira geral ter condescendido, até porque tinha a promessa do Dr. Barge em indemnizar todos os prejuízos. Inclusivamente há relatos de populares que distribuíram alimentos pelos festivaleiros mais esfomeados. Muitos optaram por se deslocarem a freguesias vizinhas na busca de alimentos e Caminha em breve se viu invadida por uma turba esfomeada. A primeira reacção dos comerciantes foi encerrarem os seus estabelecimentos, mas a atitude pacífica e simpática dos hippies logo os levou a inverter o posicionamento, a abrirem as lojas e servirem o melhor possível quem os demandava.
(continua)