Os bancos de pesca
Os portugueses pescavam principalmente no Grande Banco, que inclui parte do Banco da Terra Nova, e mais tarde na Gronelândia.
O mau tempo era naturalmente uma constante, por exemplo entre 1910 e 1916, foi totalmente impossível baixar os doris uma média de 25 dias por campanha, que foram inferiores a 120 dias.
Entre os perigos contam-se os icebergues, que afundou por exemplo o “Golfinho”, e a passagem de navios mercantes em dias de nevoeiro, que podiam afundar um dori sem mesmo darem conta.
Durante a Segunda Guerra Mundial, devido aos acordos com as potências beligerantes, a sequência das partidas para a pesca era: arrastões e veleiros para a Terra Nova, lugres para a Groenlândia.
A faina
O método de pesca adoptado pelos portugueses foi introduzido com a compra dos barcos aos ingleses e manteve-se inalterado até aos anos 70 do século XX.
Este método baseado em pequenos dóris para um homem, de cerca de 4 a 5 m de fora a fora, e que pesavam entre 80 e 100 kg, em que cada homem tinha duas linhas, com um só anzol, e pescava de pé. Para isca usava-se o clam, molusco importado dos Estados Unidos, cagarras e pequenas lulas ou peixes encontrados no estômago das primeiras capturas.
No entanto o isco preferido era a lula, e os pescadores portugueses tinham sempre a bordo uma linha para a pesca da lula guarnecida dia e noite, chegando mesmo a acordar toda a gente aquando da passagem de um cardume. A importância da lula é tal, que o primeiro a pescar uma lula recebe o mesmo prémio que o primeiro a chegar a bordo com um dori cheio: uma garrafa de aguardente.
Voltando ao bacalhau, após regressar ao navio com a captura, o peixe era atirado para dentro de umas caixas, as quêtes, com a ajuda de forquilhas, que se chamavam garfos. Daqui passava para o troteiro que o degolava e abria, com uma faca de dois gumes, a faca de trote. Ambas as denominações derivam do inglês troater. Passa para o quebra-cabeças, que lhe retira as vísceras, com uma pancada na espinha, que separa a cabeça definitivamente, empurrando-o para o escalador. Em cada mesa havia um buraco para o qual se atirava o fígado, lêvas na gíria dos pescadores, que depois de reunidos eram colocados em barricas, ficando a decompor-se, separando assim o óleo dos restantes líquidos, que sendo menos densos ficavam por baixo, abrindo uma torneira que existia no fundo das barricas.
Cabia ao escalador dar a forma ao bacalhau que nos habituamos, triangular e plano, usando uma faca de um só gume, após o que o atirava para dentro da selha de lavagem. Este trabalho decorre durante todo o dia, sob os rigores do clima, e do mar, que volta não volta tudo inunda com uma vaga. Com o cair da noite e a recolha dos últimos doris, sob a luz das lanternas de petróleo, baldeia-se o convés, lançando ao mar os restos, a que os pescadores chamam gueira, que no entanto, vai deixando o cheiro entranhado no navio, que todos menos os pescadores notam e referem.
Mas sob a coberta o trabalho continua; depois de lavado, o bacalhau vai para o porão para ser salgado, e talvez este seja o trabalho mais duro a bordo, com a escotilha quase sempre meia fechada, para proteger o bacalhau da chuva e dos golpes de mar, com pouca luz e o mau cheiro intenso, de gatas sobre o bacalhau que vão empilhando, os salgadores deitam mão cheia de sal atrás de mão cheia sobre o peixe, que passa então a ser "bacalhau verde". A memória da dureza deste trabalho ficou marcada na expressão popular que algumas mães usavam quando queriam ameaçar os filhos: “se continuas assim, mando-te embarcar como salgador”.
O frio, o sal, as linhas, em suma toda a dureza do trabalho reflectia-se sobretudo nas mãos. Incham, enrijam-nas, enchem-se de frieiras, que com o tempo rebentam, transformando-se em chagas.
Nos dóris o trabalho não permite o uso de luvas, pelo que os pescadores usam umas tiras de couro para proteger as palmas a que chamam néplas. Todas as tarefas passam-se entre as 4 horas da manhã e a meia-noite, sem feriados ou fins-de-semana, e mesmo o tempo de vigia é tirado ao tempo de descanso.
A assistência médica
A assistência médica era mínima ou nula e o facto de os engajados não passarem por nenhuma inspecção médica só aumentava as probabilidades dos pescadores caírem doentes. Após a Grande Guerra, os pescadores e os armadores, contavam com a presença dos barcos hospitais franceses, que acompanhavam a frota francesa para prestar auxílio aos seus pescadores, situação da qual beneficiaram muitos portugueses.
Um médico francês a bordo do Saint Jeanne D’Arc escreve em 1922, que de 13 doentes portugueses que hospitaliza a bordo, 5 eram tuberculosos, um outro morreu a bordo no 2º dia de outras complicações, e de vários que recusam ou vêem recusado pelos seus comandantes a hospitalização.
Por campanha, cerca de 15% dos pescadores eram vítimas de acidentes ou agravamento de situações clínicas que deixaram muitos incapacitados para sempre.
Esta situação sofre a primeira alteração em 1923, quando o “Carvalho Araújo” faz a primeira viagem de assistência e correio. O relatório efectuado pelo comandante vai ter efeitos drásticos: o navio-hospital “Gil Eannes”.
A história deste navio começa com a sua apreensão em Lisboa, na sequência do Decreto 2336, de 23 de Fevereiro de 1916, que ordena a requisição de todas as embarcações de pavilhão alemão em águas portuguesas. Entre eles encontrava-se o “Lahneck”. Após a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, em 9 de Março, o “Lahneck” passa a chamar-se “Gil Eannes” e é armado em cruzador auxiliar.
Após várias viagens na carreira dos Açores e a Macau como transporte de tropas, é decidido o seu envio para a Holanda para ser transformado em navio-hospital e em 16 de Maio de 1927 parte pela primeira vez para a Terra Nova. No ano seguinte, lamentavelmente, fica fundeado no Rio Tejo a servir de prisão e em 1929 ainda passa primeiro nos Açores para deixar um destacamento militar, antes de seguir para a Terra Nova.
No entanto só a partir de 1937 esta assistência seria a sua única actividade. Entre estas datas voltou a ser transporte de presos e até chegou a ir à China buscar refugiados, que nunca apareceram.
Este “Gil Eannes” esteve em serviço até 1955, quando foi substituído por um novo navio.
O Estado Novo
A instauração do novo regime em Portugal, a 28 de Maio de 1926, com o seu carácter fascizante e corporativo, iria trazer mudanças rápidas, que iram moldar a pesca para os próximos cinquentas anos.
A primeira media do novo regime sobre a pesca do bacalhau é o Decreto 13.441, de 8 de Abril, que é também o primeiro a ter uma visão globalizante do problema.
Entre as medidas incluídas neste decreto estão a diminuição da carga fiscal, com uma única taxa sobre o pescado; a isenção de contribuições e impostos sobre o capital investido na pesca, a criação de uma sociedade mista para segurar os navios e os equipamentos, empréstimos bonificados para a construção de novos navios; isenção do serviço militar para os pescadores após a sexta campanha, mas em contrapartida, aqueles que não embarcassem após a matrícula, seriam considerados desertores. O Decreto regulava também a proporcionalidade dos salários em função das capturas.
Estava também previsto o estudo para a instalação de uma base de apoio e secagem nos Açores, bem como a criação de uma comissão permanente de estudo das questões relativas à pesca. No seu artigo 27º estava previsto o estabelecimento de um serviço de assistência aos pescadores nos bancos da Terra Nova.
Foi neste âmbito que o “Gil Eannes” foi à Terra-nova em 1927, levando a bordo o vogal da Comissão Central de Pescarias, o Almirante Oliver, cujo relatório iria estar no cerne das mudanças nos dez anos seguintes. Entre as recomendações encontrava-se a utilização de cartas de pesca, e do termómetro de profundidade, uma melhoria qualitativa nas recruta de tripulações, o uso de isco congelado, o aproveitamento dos outros peixes apanhados, melhorar a higiene a bordo, etc.
Em 1931 volta-se a pescar na Groenlândia, o que coincide com o início do uso do “trole” (uma linha com vários anzóis, deixada no fundo e recolhida a intervalos mais ou menos regulares).
Em 1934 nova reorganização da pesca com o Decreto-lei nº 23802, de 27 de Abril, que regulamenta as disposições para empréstimos aos armadores pelo Estado. Seguida pela criação da “Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau” através do Decreto 23968 de 5 de Junho.
Esta comissão tinha poderes sobre a pesca nacional e as importações, por conseguinte sobre o “Grémio dos Armadores”, pois só os armadores inscritos podiam ser considerados nacionais que, no entanto, tinham de informar o Grémio das capturas.
Para maior controlo foi também criado o “Grémio dos Importadores e Armazenistas de Bacalhau e Arroz”, e o “Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau” em 1935.
Em 1938 outro corpo cooperativista aparece: a “Cooperativa dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau”. Dependente do Grémio era uma cooperativa que funcionava como central de compras para todos os armadores, seguido em 1936 pela “Mútua dos Navios Bacalhoeiros”, que funciona como uma seguradora.
A “Mútua” segurava riscos em valores acima da média, que iria levar a uma reacção do mercado londrino em 1945, e que se especula, daria azo a alguns naufrágios propositados ainda hoje não totalmente esclarecidos, mas nunca provados.
Reorganização da Frota 38/43
Em 1938 constatada a avançada idade e pouca capacidade da frota existente, neste anos havia dois navios com mais de 60 anos, dois com mais de 50, um com mais de 30, três com mais de 20, vinte e cinco entre ou 10 e os 20, cinco com mais de 5 e só nove com menos de 5.
Por outro lado não havia dos armadores grandes interesse na transição para a pesca de arrasto. No entanto de 1942 para 1951 o número de arrastões subiu de 6 para 20.
O fim
1968, assinala o princípio do fim, com as primeiras diminuições das capturas, e as restrições à pesca nas águas nacionais dos diversos países.
Paralelamente, após muitos anos sem perspectivas de qualquer outra saída, os pescadores começam a não querer embarcar por salários tão baixos, para correr tantos riscos, quando a vaga da emigração portuguesa e o início da actividade turística, pela primeira vez, proporcionavam outras oportunidades e melhores salários.
A pesca do bacalhau à linha terminaria definitivamente em 1974, 3 anos depois de o último lugre ter partido pela última vez para os Bancos.
Fontes:
Mário Moutinho, História da Pesca do Bacalhau, por uma antropologia do “fiel amigo”, Imprensa Universitária, editorial Estampa, Nº 40, 1985.
As póvoas marítimas, A. Sampaio, Estudos Históricos e Económicos, Vol. I Porto, 1923.
Breve Resenha Histórica”, in Boletim de Pesca, nº 28, Setembro 1950
The search for the schonner Argus, Allan Villiers, 1951 (reedição em português, Cavalo de Ferro Editores, Lisboa 2006 - ISBN 978-989-623-026-3)
Histoire des explorations polaires, Paris, 1961
Os Grandes Trabalhadores do Mar - Reportagens na Terra Nova e na Groenlândia, Lisboa, 1942 (reedição Caleidoscópio Edição: "Heróis do mar, Viagem à Pesca do Bacalhau", Casal de Cambra 2007, ISBN 978-989-8010-89-6)
Obtido em "http://pt.wikipedia.org/wiki/Pesca_do_bacalhau"