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Jul 07
 
O navio hospital “Gil Eannes” foi uma bandeira de Portugal nos mares do norte. Não havia pescador português ou de qualquer outra nacionalidade que não o conhecesse, que não o citasse com profundo respeito e reconhecimento.
No fim de vida, este navio salvou-se, por pouco, de ser desmantelado para sucata, graças ao empenho de alguns vianenses que nunca o esqueceram.
Agora flutua no antigo cais comercial de Viana do Castelo, transformado numa pousada da juventude e aberto a quem o quiser visitar, depois de obras de recuperação levada a cabo nos Estaleiro Navais de Viana do Castelo, os mesmos que o construíram há mais de cinquenta anos.
Por haver muitos pescadores ancorenses que conheceram de perto o “Gil Eannes”, alguns foram assistidos dos seus achaques, outros lá trabalharam, que decidi reunir alguns textos que nos ajudam a conhecer melhor este ícone dos mares.
 
 
Texto conforme o original do Capitão Mário C. Fernandes Esteves, comandante do “Gil Eannes” durante doze anos (1959-1971).
 
Ao ser-me solicitado, inesperadamente, que fizesse uma pequena resenha histórica do “Gil Eannes” e explicasse sem grandes pormenores o que foi a actividade deste navio no período compreendido entre os anos de 1955 e 1971 durante o qual fui seu Comandante em doze anos consecutivos, confesso que fiquei perplexo pensando qual o facto, ou factos, que estivessem mais especialmente gravados na minha memória.
A escolha não foi fácil mas, entre outros, há dois aspectos que me parecem dignos de uma primeiríssima abordagem.
O primeiro é, sem dúvida, a magnífica assistência, multifacetada, que se exercia a favor de todos aqueles que tinham necessidade de recorrer aos serviços do navio apoio; o segundo, o carácter internacional e totalmente gratuito da assistência prestada a navios e tripulações de navios estrangeiros.
Efectivamente será muito difícil encontrarmos uma assistência onde o doente goze de uma situação tão vantajosa pois, além de receber os cuidados permanentes que a sua saúde necessitava, se se tratasse de um pescador de um navio de pesca à linha, ainda recebia como pagamento, durante todo o período da sua doença, a média da totalidade do bacalhau pescado pelos restantes pescadores do navio a que pertencia.
Para os menos conhecedores do assunto esclareço que num navio de pesca à linha, contrariamente ao que se verificava nos navios de arrasto, todos os pescadores recebiam de acordo com as capturas que fizessem durante o período da pesca o que, consequentemente, se o problema não estivesse cuidado e humanamente tratado, significava que um pescador que tivesse a infelicidade de passar a maior parte do seu tempo internado no “Gil Eannes”, chegaria a Portugal mais pobre do que quando tinha partido para a campanha e, nesse caso, com que proventos é que ele faria face às necessidades económicas da sua Família durante o Inverno?
O segundo destaque, que me parece justo realçar, é o facto de exactamente os mesmos cuidados humanitários, serem gratuitamente dispensados aos pescadores e demais tripulantes de qualquer navio, de qualquer das nacionalidades que pescavam nos mares da Terra Nova e Groenlândia fossem eles, espanhóis, franceses, italianos, alemães, russos, ingleses ou das Ilhas Faroé! É evidente, que a estes não era paga qualquer indemnização por pesca perdida.
Creio que, os dois destaques apontados foram, sem dúvida, os mais marcantes da história das actividades do “Gil Eannes” não só no período sobre o qual me foi pedido este apontamento mas, durante toda a sua existência.

 
Com efeito, o “Gil Eannes” que fora criado predominantemente como o navio apoio da frota bacalhoeira, com uma vertente muito forte virada para o campo da saúde, durante o período de defeso também foi muitas vezes utilizado na salvaguarda dos sagrados interesses da Nação, e não só, quer como transportador de bananas ajudando muito eficazmente a resolver os graves problemas dos bananeiros de Angola quer como navio transporte de peixe congelado capturado por pescadores portugueses nos mares da África do Sul. Nesta região também o “Gil Eannes” desempenhou um magnífico papel de embaixador e representante da Nação Lusíada.
Após os apontamentos anteriores, façamos então uma breve introdução histórica do “Gil Eannes” desde o seu aparecimento na Marinha Portuguesa.
Este “Gil Eannes” dos nossos dias, é o segundo da sua geração. Foi lançado ao mar, ou melhor, foi posto a flutuar no dia 19 de Março de 1955 nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo tendo sido ordenada a sua construção, pelo Grémio de Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau.
Esta unidade veio substituir um antigo cargueiro a vapor, alemão, construído em 1914, que ficara retido num porto nacional logo no princípio da sua existência devido ao conflito mundial e que, dois anos mais tarde, devido à declaração de guerra da Alemanha a Portugal, foi apresado e sofreu substituição de bandeira.
Esse navio, denominado ”Lahneck”, passou então a chamar-se “Gil Eannes” e ficou sob a jurisdição da Marinha de Guerra Portuguesa. Este primeiro navio a vapor Gil Eannes, fez a sua primeira assistência aos navios de pesca nos mares da Terra Nova no ano de 1927 totalmente equipado e tripulado pelos nossos distintos Oficiais e Marinheiros da Marinha de Guerra.
Esta situação manteve-se até ao ano de 1942 em que transitou para a jurisdição da Marinha Mercante sendo o seu primeiro Comandante o Sr. Capitão Cândido da Silva devidamente acreditado para o efeito pela Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau.
Manteve-se este primeiro Gil Eannes ao serviço da frota de pesca, desempenhando as suas funções com inúmeras dificuldades devido às suas limitações e ao muito que lhe era solicitado, até ao ano de 1954, ano em que pela última vez prestou assistência aos navios de pesca.
Era nessa altura seu comandante o Capitão João Pereira Ramalheira que, em 1945, tinha substituído o Comandante Cândido da Silva.
A nova unidade, que entrou ao serviço em 1955, herdou do seu antecessor não só o espírito mas também o nome de Gil Eannes, o comandante e o sino de proa que suponho ainda lá existir.
 
Começou então, nessa longínqua primavera de 55, a vida do “Gil Eannes” dos nossos dias, construído propositadamente para a assistência e apoio à frota da pesca do bacalhau e que, por assim ser, estava muito razoavelmente equipado para bem desempenhar as funções a que era destinado.
Durante o período de 1955/1958 foi comandando pelo Sr. Capitão João Ramalheira (habitualmente conhecido por razões que desconheço por Comandante Vitorino Ramalheira) e, em 1959 assumiu o comando o Capitão Mário C. Fernandes Esteves que nessa função se manteve até ao ano de 1971 data em que, a seu pedido, foi substituído pelo Sr. Comandante António Papão Chinita.
 
Durante o período de 1959/1971, que vivi muito intensamente e do qual muito me orgulho, posso afirmar que o “Gil Eannes” fez tudo o que era possível fazer-se em benefício da Economia Nacional, em benefício dos Armadores da Pesca do Bacalhau e, finalmente mas não menos importante, em benefício dos nossos navios da frota da pesca do bacalhau e, muito especialmente, das suas tripulações.
Pode dizer-se que, nessa época, o “Gil Eannes” era o suporte de toda a frota nos seus mais variados aspectos desempenhando simultaneamente funções de "Embaixador" representante dos portugueses e de Portugal em diversas regiões do globo e em locais tão distantes como o são a Groenlândia e a África do Sul por exemplo como anteriormente tive oportunidade de citar.
 
 
Conforme disse ao princípio deste apontamento, a acção do “Gil Eannes” também se fazia notar de uma maneira bem acentuada no campo das relações públicas e de, enaltecimento não só das obras, mas também do nome de Portugal.
Dentro de muitas e variadas acções, algumas das quais já, naturalmente, se me varreram da memoria, ainda recordo muito vivamente as seguintes: recepção no porto de St. John's aos representantes de todas as Nações que faziam parte da Icnaf (International Comittee Northwest Atlantic Fisheries); recepção oferecida pelo Sr. Embaixador de Portugal em Ottawa, em St. John's, ao Ex.mo Governador e demais Autoridades da Terra Nova, na altura da oferta da estátua do navegador Gaspar Corte Real, pelo Governo Português, ao Governo da Terra Nova; recepção no “Gil Eannes” a Sir Humphrey Gilbert em preito de gratidão e homenagem aos trabalhadores portugueses na Terra Nova, devido a um antigo Capitão pescador português, ter salvo um seu antepassado, em décimo grau em linha directa, que andava perdido sem água, nos mares da Terra Nova; visita do “Gil Eannes” no fim da sua época de serviço na Groenlândia, ao porto de Gronnedal onde se encontrava instalada a base da Nato, no Noroeste do Atlântico e, onde eram considerados dias de especial convívio os dois dias de permanência do “Gil Eannes” no porto; visita anual, por cortesia, do N/m “Gil Eannes” ao porto de Godthaab - capital da Groenlândia - a fim de homenagear e receber a bordo, não só as autoridades mais representativas da província, como as pessoas mais importantes da terra e, especialmente o corpo clínico do hospital local; facilidade do “Gil Eannes” em pôr à disposição dos hospitais groenlandeses o corpo clínico do navio para ajudarem em algumas intervenções clínicas feitas em terra e a naturais da Groenlândia.
 
Foi ainda no “Gil Eannes” que, por maiores ou menores espaços de tempo, embarcaram entre outros: o escritor Allain Villiers, que tornou o Lugre Argus mundialmente famoso, não só através do seu livro “The Quest of the Scooner Argus” como também através do seu artigo, publicado no National Geograhic Magazine “I Sailed With The Portuguese Brave Captains” o escritor alemão Max Stantze, que com uma equipa de filmagens e de som, realizou um documentário para o Departamento de Pescas do Governo Alemão; o artista fotográfico Leonard McComb, que ao serviço da revista Life, foi tirar fotografias da actividade dos portugueses nos bancos da Terra Nova, para ilustrarem uma edição especial totalmente dedicada ao Mar e seus Trabalhadores; os cineastas holandeses Aanton e Bert van Munster que, com uma equipa de cinco elementos, estiveram a bordo do “Gil Eannes” para fazer um documentário encomendado pelo National Geographic Magazine sobre a pesca dos portugueses na Terra Nova, e, muito especialmente, os navios de linha; o jornalista e escritor americano John Pickwick que, também para o National Geographic Magazine, foi escrever um artigo sobre a pesca dos portugueses para lançamento do documentário feito pelos irmãos van Munster; os artistas fotográficos Dante Vacchi e Anne Gauzes que foram colher material para publicação de um livro fotográfico sobre a pesca do bacalhau dos portugueses e que, acabou por não ser editado em Portugal porque algumas das nossas Autoridades não concordaram com o título "Pão Amargo" que os autores pretendiam dar à sua obra.
 
Muito já disse, e muitíssimo mais poderia ainda dizer mas, creio, que já vai sendo tempo de terminar pois o relatado deverá ser mais do que suficiente para demonstrar o que pretendi dizer, ao afirmar que o “Gil Eannes” honrava permanentemente o nome de Portugal e, muito especialmente, os seus Marinheiros.

 
A partir dos fins de 1963, por dificuldades económicas para a exploração do navio, foi permitido ao “Gil Eannes” - por decreto publicado no Diário do Governo - fazer viagens de comércio como navio frigorifico e de passageiros, entre as campanhas de pesca.
No decorrer dessas viagens para angariação de fundos para suporte da unidade o navio visitou, em anos consecutivos, vários portos tais como; Luanda e Lobito para transporte de passageiros nas ida para Sul e transporte de bananas na viagem para o Norte; Cape Town na África do Sul para transporte de peixe congelado pescado na região por arrastões portugueses; Aalesund, na Noruega, para transporte de isco congelado para a frota de pesca e bacalhau seco para o mercado nacional; Bridgetown, no Canadá, para carregar comida congelada para mink (animal também conhecido como vison) que foi descarregada no porto de Hals na Dinamarca; Prince Edward Island, no Canadá, onde carregamos batatas e legumes congelados, destinados ao porto de Grimsby na Grã-Bretanha; Alicante, na Espanha, para descarga de bacalhau em barricas, carregado na Terra Nova; Harbour Grace; Catalina; North Sydney, etc., etc., foram outros portos demandados pelo N/m “Gil Eannes” apenas em operações de comércio marítimo mas, apesar disso, em cada um deles, pelos convites que fazíamos e pelas recepções dadas a bordo, não só aos Agentes, mas também às autoridades e aos principais das diversas terras, deixávamos altamente colocado o nome de Portugal e bem explicada qual a nossa função principal no Mar.
Das estadias em serviço no Lobito e em Cape Town tenho recordações muito especiais pela admiração que o navio causou e por todas as inúmeras provas de gentileza com que fomos distinguidos e que, oportunamente, transmiti a quem de direito.
Era tanto o prestígio que o “Gil Eannes” gozava nos portos da Terra Nova e, em especial, no porto de St. John's que nos era atribuído um estatuto muito especial de que, mais nenhum navio gozava.
Assim, em emergência, ao serviço da frota era-nos permitido sair do porto de St. John's sem tratar de qualquer documentação para a saída e regresso ao cais de partida - que entretanto ficara reservado - sem qualquer documentação de entrada a não ser dois simples telefonemas para o Capitão do porto e para a Alfândega.
Ainda nesse porto, apenas ao “Gil Eannes” era permitido trocar material directamente com qualquer navio de pesca português sem a mínima interferência ou fiscalização das autoridades alfandegárias que, naturalmente, recebiam a nossa comunicação prévia do que pretendíamos fazer e quando.
Se estas atitudes, que sabia nunca terem sido concedidas a outro qualquer navio, não representavam prestígio e motivo de orgulho então não sei o que essas palavras significam.   
 Em linhas muito gerais creio ter deixado uma clara ideia de qual foi a actividade do navio apoio “Gil Eannes” - ou como os canadianos chamavam "The Mother Ship of the White Fleet" - durante o período de 1959 a 1971 conforme me tinha sido solicitado. 
Em suma, por todas as acções realizadas, em prol de todos, este N/m “Gil Eannes” é único no Mundo! 
As minhas desculpas pelo meu fraco poder de síntese e pelo tempo que, por certo, vos ocuparei.
 
Mário C. Fernandes Esteves
(Comandante)
 
 
Lisboa, 18 de Janeiro de 1996
publicado por Brito Ribeiro às 15:57
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