Ambiente, história, património, opinião, contos, pesca e humor

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Jul 07
Estávamos em Julho de 1976 e as aulas já tinham terminado. Para juntar algum dinheiro, a malta costumava ir à ribeira apanhar percebes, mexilhões, musgo e sargaço para vender.
Era um biscate duro, pois andávamos dentro de água horas seguidas a carregar sacos pesados, a escorrer água para tirar o sargaço e levá-lo praia acima até às dunas, para ser estendido e seco. Trinta ou quarenta quilos ao sair da água, que depois de seco ficava em um ou dois quilos, uma miséria!
E os percebes eram vendidos nos cafés entre os trinta e quarenta escudos para de seguida serem postos à venda por oitenta ou cem escudos, outra roubalheira, pois nós é que lixávamos as mãos, nós é que ficávamos dentro de água enregelados, pois naquele tempo não havia fatos de neoprene para ninguém. Isso foi uma modernice que apareceu muito depois!
Estávamos divididos por equipas de três ou quatro elementos, pois era mais fácil assim do que individualmente e os meus parceiros eram o Nelson e o Zé da Linha, ambos da Laje. Trabalhávamos habitualmente entre Penedim e o Quintino, apenas íamos a Afife para os percebes.
Ainda hoje acho que fazíamos uma boa equipa, pois alem de nos entendermos bem, tínhamos genica suficiente para deixar os outros a bufar de raiva. Éramos os primeiros a chegar e os últimos a sair da água. Também era verdade que saíamos mais mortos que vivos de tão demolhados estarmos.
Isto vem a propósito de ganharmos algum dinheiro para as nossas “coboiadas” pois os nossos pais não eram ricos e o dinheiro era espremido.

Nesse ano de 1976 decidimos ir acampar uma semana para as Azenhas em Vilar de Mouros e por isso precisávamos de “massa”, apesar de fazermos os abastecimentos principais por descarga directa das despensas das nossas casas.
Depois de algumas hesitações, com desistências à mistura, partimos cinco à aventura. Eu, o Nelson, o Mac, o Tone do Talho e o João. O Nelson já o apresentei, o Mac (quase a minha alma gémea) que é filho da D. Amélia professora, o Tone filho do Sr. Ernesto do Talho e o João que era de Lisboa e que vinha passar férias a Âncora todos os anos.
Ele ainda é parente da mulher do meu primo Fernando Meira e foi assim que nos conhecemos e ficamos amigos.
Já não me lembro bem mas parece-me que eu e o Mac fomos de bicicleta e os outros apanharam boleia com do irmão do Tone, o Ernesto que foi levar as tralhas no seu reluzente Fiat 128, que ainda possui.
Tínhamos três tendas canadianas que eram ocupadas pelo Nelson e por mim, noutra ficava o Mac e o Tone e na última ficava o João, que adorava o estatuto de ter uma tenda só para ele. Pudera, ninguém queria ficar com ele pois ressonava muito e cheirava a chulé que empestava. Deixem-me dizer que nenhum de nós era muito melhor, mas o João era o que tinha pior fama.
Em 1976 as Azenhas eram um local muito mais recatado que hoje, os carros só com muita dificuldade lá chegavam e praticamente só para lá ia banhar-se a malta da zona, nada de forasteiros.
Nós éramos uma excepção, mas éramos bem aceites pela fauna local, pois conhecíamos a malta toda que estudava no Externato de Santa Rita em Caminha ou no Liceu em Viana. E além disso já tínhamos acampado lá nos anos anteriores, pelo que já éramos quase da casa!
Instalámos as tendas no terreno do fundo, que hoje está cheio de silvas e nessa altura era todo relvado, as tendas em linha com o “rabo” virado ao rio; ao lado da nossa tenda havia (e ainda lá está) um enorme eucalipto, no qual penduramos um pequeno espelho para as nossas vaidades.
Um dia foi preciso fazer arroz (de feijão) para acompanhar umas bifanas que o Tone trouxera e fui o encarregado de preparar o tal arroz. Depois de muitas invenções, o arroz estava como o cimento e só eu e o Mac, por solidariedade, o conseguimos comer. Os outros acabaram por embrulhar as bifanas no pão que sempre era mais macio. Nunca mais me pediram para fazer mais nenhum cozinhado, apenas me cabiam tarefas menores como descascar batatas, ir buscar água ou lavar a louça.
Durante o dia preguiçávamos ali pelas azenhas entre o areal, as tendas e a água, fazíamos (algum) sucesso entre as raparigas (ah, ah) e ao anoitecer íamos até à aldeia por um estreito carreiro entre os campos de milho e o rio Coura.
Hoje passa lá um caminho calcetado e no espaço onde se cultivava o milho realiza-se o Festival de Vilar de Mouros. Mas naquele tempo o caminho era estreito e só por lá se circulava a pé ou de bicicleta com as devidas cautelas.
Na aldeia íamos sempre para um estabelecimento do qual não me recordo o nome e onde também nos abastecíamos, pois no rés-do-chão era a mercearia e o café no andar superior.
Decorria um acontecimento que nos empolgava e nos prendia a atenção durante horas ao televisor, fosse no único canal português, quer na “espanhola”, canal com melhor captação, muito mais nítido e com melhor informação.
Eram os Jogos Olímpicos de 76 em Montreal no Canadá e na ginástica Nadia Comaneci dava cartas e arrasava a concorrência. Todos gostávamos destas emissões, particularmente o João que era um verdadeiro fanático e que não nos deixava arredar pé enquanto na televisão desse alguma coisa sobre isso. Acho que a partir daí, fiquei um bocado enjoado com os jogos olímpicos…
Bebíamos uns finos, roíam-se uns amendoins e jogava-se às cartas entre uma e outra olhadela à televisão, até a proprietária do café nos “chutar” porta fora, já depois da meia-noite.
E lá vínhamos nós para as azenhas, primeiro até à ponte medieval que, permitam-me um parêntesis, precisa urgentemente de ser consolidada, senão qualquer dia passa a ser a ex-ponte medieval e iremos ver uma quantidade de hipócritas a carpir a sua morte.

Mas, dizia eu, que atravessávamos a ponte e virávamos à esquerda pelo tal “carreiro” de que vos falei, todos em fila indiana, o primeiro com um foco e outro, lá para o meio, com outro foco.
Naquele tempo não haviam focos com “leds”, nem pilhas alcalinas, nem focos recarregáveis e muito menos lojas dos chineses para comprar essas “merdas”.
Por isso a luz era escassa e muito poupada. Cedo reparamos que o João, que todos sabíamos medricas, queria ir sempre entalado entre os dois focos e nunca ficava para trás, por motivo algum.
Uma bela noite combinamos pregar-lhe uma partida para lhe meter um “cagaço”. Era uma coisa simples, quando à noite estivéssemos de regresso às tendas, o da frente que habitualmente era o Nelson, apagava a lanterna e todos fugíamos para o meio do milho às escuras e a berrar que nem desalmados.
O nosso amigo sentou-se no chão a tremer e só não chorou porque o medo lhe gelou o sangue e as lágrimas. Quando regressamos ao seu convívio, a rir, todos prazenteiros, o João “pintou-nos a manta” de tão zangado que estava.
Mas esse problema de ser medricas ainda havia de causar outra “cena”, como se diz agora, pois uma noite, às tantas da madrugada, já estávamos a dormir, apareceram uns gajos com várias motorizadas a fazer um cagaçal tremendo, com as motas ali perto das tendas.
Na verdade ninguém se aproximou de nós, nem nos provocou, mas uns rapazes enfiados às escuras dentro de umas frágeis tendas num local recôndito, por muito valentes que sejam ou queiram mostrar que são, acabam sempre por se borrar todos de susto.
Foi o que nos aconteceu; eu e o Nelson tínhamos dentro da tenda uma espingarda de caça submarina (acho que era do Mac), esticamos os elásticos e armamos o arpão, por "causa das moscas". Na tenda seguinte o Tone e o Mac chamaram baixinho por nós e estabelecemos algum diálogo de vizinhos. Da tenda do João é que nem pio.
A certa altura os gajos lá se foram embora e após algum tempo de expectativa e de sossego, decidimos sair das tendas, até porque o João continuava sem dar acordo de si.
Verificamos com espanto que a tenda dele estava aberta e que ele tinha desaparecido. Foi em vão que o chamamos e como o sono já tinha ido, fizemos uma fogueira à volta da qual nos sentamos.
Muito tempo depois, pelo menos assim nos pareceu, surge o João do meio de um campo de milho que havia na banda de cima do nosso acampamento. Vinha com um ar tranquilo e explicou-nos que tinha ido dar uma volta. É preciso ter lata! Então tinha ido dar uma volta, heim? O gajo tinha-se pirado e certamente ficou encolhido entre espigas e pondões, até ter a certeza que o sobressalto tinha partido para não mais voltar. E ainda por cima vinha tentar meter-nos os dedos nos olhos!
É claro que ninguém mais voltou para a cama, até porque o dia já nascia e havia muito que vadiar.
Um dia assistimos à chegada de mais uns campistas, vários casais com várias tendas, já não me lembro, três ou quatro, que as montaram um pouco mais para o interior do terreno. Ali junto ao rio, só nós! Traziam um belo cão Pastor Alemão que rapidamente acamaradou connosco e logo passou a cirandar por entre as tendas sem que ninguém se sentisse incomodado.
O problema foi quando o descobrimos a mastigar regaladamente um dos frangos que iria ser o nosso jantar. Pelos vistos o ar do campo tinha-lhe aberto o apetite… Ora nós tínhamos dois frangos, o que até nem era muito para aqueles cinco galifões; se o cão tinha comido um deles, estão a ver o problema, ia ser uma barrigada de fome. Lá tínhamos nós de fazer um reforço com mais um par de trigos secos.
O Nelson ficou danado e foi ter com o dono do animal que não acreditou que ele tivesse feito uma maldade dessas. Não acreditou até ver os poucos despojos que sobraram, depois ficou de orelha murcha, pediu desculpas e não teve outro remédio que ir comprar outro frango para nos compensar as perdas. Vá lá que o homem foi consciencioso e trouxe um frango bem maior que o “desaparecido”.
O desgraçado do cão é que passou a ficar amarrado a uma árvore como castigo para tamanha gulodice. Ficou preso, mas pelo menos, estava de barriga cheia!
Um sábado à noite recusamo-nos a ir ver a estopada dos jogos olímpicos e fomos todos ao cinema. Sim, ao cinema em Vilar de Mouros, em 1976.
Havia uma casa, junto ao cruzamento com a estrada que vai para Covas, que hoje está em ruínas, um tipo de Centro Cultural ou Recreativo e que passava uma “fita” aos sábados à noite, sentando-se os espectadores em bancos corridos e cadeiras avulso, tendo como tela um simples lençol branco. Foi daquelas idas ao cinema que nunca mais esqueci, uma maravilha.
Sei que os meus pais ainda foram lá uma vez abastecer-me de mercearia e o Ernesto passou por lá várias vezes descarregando carne para o irmão (e para os amigos esfomeados).
Nunca esta equipa voltou a acampar juntos, apenas eu e o Mac continuamos por mais alguns anos a vadiar, nesta espécie de turismo selvagem, em que tínhamos uma tenda, um saco cama e pouco mais. Claro que as tendas eram canadianas, daquelas baixinhas em que se entra de gatas. Era o que havia!
Apesar que termos deixado de ser parceiros de acampamentos, a amizade ficou e hoje tenho muito gosto em contar estas simples peripécias, que marcaram uma fase da minha, da nossa juventude.
publicado por Brito Ribeiro às 18:06
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