- D. Júlia, logo, depois do almoço venho mais tarde. Lembra-se do que lhe falei a semana passada?
- Ah… Isso da carta. Claro que me lembro.
- Carta, então sempre vais tirar a carta? – intromete-se a Tia Joaquina, que deita sempre atenção a tudo.
- É, preciso da carta para o meu futuro. Conduzir já eu conduzo, falta é o papelinho.
- Eu sei que tu conduzes bem, mas diz ao homem da escola de condução que te leve para fora da Vila, não vá o diabo tecê-las.
- Oh Tia Joaquina, você é terrível. Dizer-me uma barbaridade dessas, nem a brincar!
A Júlia que atendia uma freguesa no outro lado da loja, virou-se de costas para rir à sucapa. Quando lhe passou o ataque de riso, disse com falso ar sério:
- Então Tia Joaquina, não é por causa daquele azar com o carro da polícia que o moço vai ser gozado toda a vida.
- Eu sei, estava a brincar com ele, mas ainda não me esqueci que no dia em que virou a ambulância eu também era para aproveitar a boleia e ir ao hospital marcar uma consulta. Olha do eu me safei! Para não falar no teu homem, que quase ia “para o maneta”.
- Afinal já está aviada ou ainda falta mais alguma coisa, Tia Joaquina? – Corta o Bertinho com o ar carregado.
- Não sei, mas aqueles gajos andam a preparar alguma, e das boas! – Exclamou o Quim Tita.
- Será por causa do clube de futebol? – Interrogava-se o Gonçalves.
- Não. Aí quem manda é o homem da Suzete e ninguém lhe cobiça o lugar.
- Então? Que será?
- Olha, aqui há interesses com o empreiteiro, o Tijolo. Será que estão a preparar algum negócio dos grandes?
- Alguma urbanização? – Pergunta o “Adesivo”.
- Não me parece, senão eu sabia logo. Não te esqueças que eu também estou no ramo. Deve ser outra coisa.
- E não haverá formas de conseguirmos informações?
- Já estou a tratar disso. Não te preocupes, entendido? – remata o Titã, sem descobrir demasiado o jogo.
- Schiuu…. Pouco barulho! Ninguém sai daqui enquanto não souber de cor o Pai Nosso. Carolina, toma conta deles, enquanto vou falar com o sr. Padre Esteves – diz a Júlia, levantando-se e observando cada um dos catraios, vestidos com a farda da catequese – Ricardo, pára de tirar macacos do nariz e limpar os dedos à farda!
Sai apressada do Centro Paroquial, entre a Igreja e o paçal, dirige-se para a porta da sacristia que estava aberta. Sentado a uma mesa o Padre Esteves lia o jornal. Já fazia calor, a primavera chegara em força e dentro da sacristia o ar fresco acariciava as faces afogueadas da Júlia.
- Bom dia sr. Padre Esteves. Posso entrar?
- Entra, entra minha filha. Então não estás a dar catequese?
- E estou, só vim aqui para lhe dizer que já temos o dinheiro.
- Ah… Deixaste-os sair mais cedo. Fizeste bem, assim ainda vão brincar um bocado.
- Já temos o dinheiro – grita a Júlia.
- Já temos o quê?
- O dinheiiiro!
- Ah! Já temos o dinheiro? Que bom. Então podemos começar a obra. Agora é que vou falar com o Quim Tita para…
- Não vai não, quem trata disso sou eu.
- Mas tu disseste que depois…
- O Padre Esteves é que não percebeu. Eu já tenho empreiteiro.
- Já sei que tens o dinheiro!
- Não é o dinheiro, é o empreiteiiiiro – Berrou a Júlia.
- Não estou a perceber, tu tens ou não tens, o dinheiro para o caminho?
- Tenho, sr. Padre, tenho o dinheiro e tenho o empreiteiro para fazer a obra.
- Ah… Já falaste com algum empreiteiro?
- Já. O Tijolo vai fazer o caminho e só pagamos o material e a mão-de-obra, sem lucro para ele.
- O Tijolo, tens a certeza minha filha? Olha que ele é um bocado aldrabão.
- Não diga isso, o homem veio oferecer-se, cheio de boas intenções.
- O que é que ele deu?
- Ele é que se ofereceuuu!
- Ah, tu lá sabes, mas tem cuidado, ofertas do Tijolo são de desconfiar.
- Então Bertinho, amanhã vais ao tribunal por causa do julgamento? – Pergunta a tia Vicencia, enquanto remexia a bacia atulhada de couves galegas.
- Vou sim senhora, amanhã às onze horas tenho de me apresentar no tribunal.
- Às onze? Mas o julgamento começa às nove.
- Pois é, mas eu pedi ao juiz para me dispensar até às onze…
- Para vires ajudar a Júlia, não?
- Não, é que tenho aula de condução e não queria faltar.
- E o juiz autorizou? Muito me contas, agora percebo porque é que a justiça está de rastos…
Enquanto isso, a Júlia e a Suzete, a um canto da leitaria falavam em voz baixa e com as cabeças próximas uma da outra. Pelos semblantes sérios percebia-se que discutiam algo importante.
- Já disse ao Zé Bastos que é preciso ter uma conversa com o Bertinho. Isto não pode continuar assim. Temos de o trazer para o nosso lado quanto antes, pois esse velho mafioso do Quim Tita anda sempre em cima dele.
- Eu ainda tenho algumas duvidas, mas se tu dizes que ele é de confiança! Pelo menos conhece-lo melhor que eu.
- Eu confiar, confiar, não confio…
- Mau, mau!!!
- Não confio a cem por cento, mas quase. Sabes que eu dou-lhe a volta. Ele não é mal rapaz, gosta é de dar nas vistas.
- Se tu o dizes! Vamos lá a saber, se o metermos nisto o que lhe vamos dar para fazer?
- Eu pensei em pô-lo, para já, na direcção dos bombeiros e se ele fizesse boa figura depois se veria.
- Nos bombeiros? Achas? Não seria melhor ficar na direcção do clube com o meu homem durante uns tempos? Vai haver agora eleições e ele podia ajudar com as camadas jovens ou lá que é isso dos putos.
- Pois… - diz a Júlia pensando qual a melhor solução – Já sei, fica para já no clube de futebol e depois vai para os bombeiros. Se quer, quer. Se não quer, que diga. Amanhã falo com ele.
- E o Zé Bastos, está de acordo?
- Se não está, passa a estar. Já lhe falei nisso várias vezes e anda a empatar, a dizer que fala com os de Barcelos, que vai pensar, que fala com o irmão, olha… nem ata, nem desata. Assim, resolvo eu.
- Assim é que é falar. Estes homens são uns empatas!
- Amanhã falo com ele e com o Bertinho e ficam as coisas alinhavadas. Com o teu homem no futebol mais o Bertinho, os bombeiros controlados, a banda de musica também, eu na igreja controlo a catequese, os escuteiros e a Fabriqueira… Só nos falta gente para tomar conta do lar dos velhos.
- Deixa estar que havemos de arranjar. Viste como conseguimos com a Misericórdia.
- Nem me fales desses tipos, que aquilo ainda vai acabar mal. A ver se eles se aguentam.
- Nisso tens razão, podem estar do nosso lado agora, mas não são nada de confiança, só querem é mamar. Temos é de ir falar com uma senhora, dizem que é perto de Melgaço, que lê nos búzios e nas pedrinhas.
- E isso resulta? – Pergunta a Júlia com ar de dúvida.
- Olha a Ivone tinha problemas lá em casa com a filha e com o marido, já tinha corrido tudo e nada. Foi lá e em três sessões resolveu a vidinha dela. A filha anda outra vez a estudar e o Gomes diz que nunca mais voltou a ir para as brasileiras de Valença.
- Ah!!! Então vamos lá na próxima semana. É preciso marcar ou como é?
- É preciso ir cedinho para ganhar a vez, só isso.