Ambiente, história, património, opinião, contos, pesca e humor

27
Jan 14

Da autoria do Prof. Paulo Bento esta crónica deliciosa sobre a Praia d'Âncora e as suas gentes. Não resisti a publicá-la!

 

Ainda não tinha passado um ano da instauração da República, quando as ameaças monárquicas ao novo regime, protagonizadas por Paiva Couceiro, obrigaram à mobilização de tropas governamentais para o norte do país. Entre julho e dezembro de 1911, militares da Armada andaram regularmente pelos concelhos da raia alto-minhota, entre os quais Caminha, patrulhando a fronteira e prevenindo as conspirações realistas. Um dos destacamentos ficou estacionado na Praia de Âncora, trazendo uma nota de animação ao quotidiano daquela terra de coração republicano: "Bom exemplo de patriotismo acaba de mostrar um pequeno grupo de marinheiros aqui destacado. No passado domingo [5 de novembro], com uma criança vestida de República e acompanhada da banda musical desta freguesia [Gontinhães], percorreu as ruas e lugares desta praia, angariando donativos para a subscrição a favor da compra dum novo cruzador" (jornal Folha de Viana, 7-11-1911).

Como era costume ao tempo, nas localidades onde não havia instalações castrenses, as praças, sargentos e oficiais ficavam alojados e alimentavam-se em casas particulares, em arranjos negociados pelos próprios com os moradores.

Apesar da norma ser o bom relacionamento entre militares e populares, por vezes esses tratos desencadeavam alguns problemas, como sucedeu no caso que aqui trazemos. Enviado da Praia de Âncora, datado de 10 de julho de 1912, sem dúvida redigido por mão ilustrada, provavelmente de bacharel de Direito, assim constava um requerimento dirigido ao Ministro da Marinha:

"Miguel Lourenço, viúvo, taberneiro, morador na Praia d'Âncora, freguesia de Gontinhães, concelho de Caminha, vem respeitosamente expor a V.Ex.ª o seguinte. Quando, de Setembro a Dezembro de 1911, permaneceu aqui um destacamento das forças da Marinha, foi o supp.[ra citado] quem, do seu estabelecimento, lhe forneceu géneros alimentícios, por intermédio de Manuel Martins, cabo nº 762, da Divisão dos Reformados da Armada, residente nesta Praia.

Este requisitava e recebia os géneros, só entregando algumas quantias por conta do débito. Aconteceu, porém, que a força foi retirada, ficando nessa altura um saldo a favor do supp.[ra citado] de Rs. 20.845. Por bastas vezes o supp.[ra citado] tem exigido, em particular, ao referido Manuel Martins, o pagamento deste saldo; mas ele obstina-se em não o pagar, alegando que não recebeu das praças.

Ora o supp.[ra citado] é pobre, vivendo exclusivamente do seu pequeno negócio, de onde tira o parco sustento para si e para os quatro filhinhos, e esta quantia, em absoluto pequena, representa todavia um desequilíbrio notável nas suas ténues finanças, caso tenha de perdê-la.

Bem sabe o supp.[ra citado] que, nos termos gerais do Direito, devia accionar o devedor ou devedores; mas este expediente, mesmo na melhor hipótese de vencimento, seria nulo nos seus efeitos, pois que na execução da sentença nada encontraria para penhora, visto que os devedores — praças da Armada — nenhuns bens naturalmente possuem. Apenas lhe resta um meio: pedir a V.Ex.ª providências tendentes a compelir os devedores ao pagamento, por meio de equitativo desconto no seu pret [vencimento] em um ou mais meses.

Exmº. Sr. Ministro: é justa a pretensão do supp.[ra citado], como justo é que, sobre esses briosos e valentes patriotas, nunca pese a mais leve suspeição de um acto menos correcto....".

 

 

 

Reagindo com celeridade à queixa do taberneiro da Praia de Âncora, o Ministro da Marinha — à época Francisco Fernandes Costa (1857-1925) — despacha o assunto para a Majoria General da Armada. Este departamento abre um processo de averiguações e, através da Direção Geral da Marinha, incumbe o capitão do porto de Caminha — o Capitão-tenente José de Abreu Barbosa Bacelar (1866-1946) — de "ouvir o reclamante Miguel Lourenço e o intermediário Manuel Martins, e informar do que for possível apurar". Assim sucedeu no dia 2 de agosto, nas dependências da Capitania, sendo primeiro chamado o reclamante que, interrogado, reafirmou as suas razões, explicitando que os géneros por si fornecidos eram para "sustentação do destacamento de marinheiros que comiam em casa dele [Manuel Martins] conjuntamente com ele e família... seriam aproximadamente sete [praças] e o mais graduado era um sargento". De seguida foi a vez do cabo reformado ser inquirido. Começou por esclarecer não ser o assunto um trato seu — "foi minha mulher que ficou com esse negócio" — e acrescentou que, se primeiro o destacamento vinha apenas dormir a Âncora, "voltando para Caminha na manhã do dia seguinte", depois, "como se fosse mais prático ficar permanentemente em Âncora... entrou em negociações para darem em Âncora de comer". Manuel Martins acabou contudo por reconhecer que tinham recebido integralmente as quantias devidas por parte dos marinheiros e que não saldara contas com o taberneiro porque "só há pouco soube desta dívida de minha mulher", declarando-se no entanto disposto a "pagar a Miguel Lourenço... por pequenas deduções nos meus vencimentos". Afinal, como sentenciaria dias mais tarde a Majoria General da Armada, "em virtude das investigações promovidas...se conclui tratar-se de uma dívida entre particulares...o cabo não pertencia ao destacamento, e as praças deste não ficaram a dever nada".

 

 

Ficamos sem saber ao certo se Miguel Lourenço alguma vez recebeu a totalidade da dívida contraída pela mulher do cabo reformado mas, em contrapartida, cremos que uma terceira parte pode ter beneficiado deste caso. Um ano decorrido sobre os acontecimentos acima narrados, talvez premiando o expediente no apuramento dos factos e consequente desagravo da honra da Marinha, era publicada no Diário do Governo de 11 de setembro de 1913 a nomeação do "capitão-tenente, José de Abreu Barbosa Bacelar, para o cargo de chefe da segunda secção da 2ª Repartição da Majoria General da Armada". No prosseguimento da sua carreira militar, o antigo capitão do porto de Caminha dos tempos da República ainda atingiria a prestigiada patente de Contra-almirante. Quem sabe se não foi decisivo o empurrãozinho do processo do calote do taberneiro da Praia de Âncora?

 

REFERÊNCIAS

Paulo Torres Bento (2010). Da Monarquia à República no concelho de Caminha. Caminha: Edições Caminha2000; Direcção Geral da Marinha — 2ª Repartição. Processo nº 424, Julho e Agosto de 1912. Arquivo Geral da Marinha; Diário do Governo, 13 de setembro de 1913.

 

Um agradecimento muito especial ao nosso amigo ancorense Paulo Barreto, homem de muitas e variadas artes e saberes, que nos fez chegar os documentos que suportam esta crónica e nos desafiou a escrevê-la.

publicado por Brito Ribeiro às 10:22

04
Jan 14

Aurora desperta a razão

Nas águas agitadas do mar gélido

Como gigante impondo a vontade

Ao pobre pescador aperta o coração

Por a maresia não fazer sentido

E amarrá-los em terra à mendicidade

 

Terras a dentro vão em procissão

Casa a casa pedem pão

Arrastam os tamancos pelo caminho

As lajes testemunham a submissão

Homens famintos com o grilhão

De filhos que esperam bucha e carinho

 

A brisa virou a noroeste

O mar engole a espuma e as mágoas

Retira-se para onde impera

A refrega já não é agreste

Redes, anzóis, velas e masseiras

Vamos ao mar que arribou a primavera

 

Para trás fica a triste lembrança

A fome e a miséria aplacadas

Com côdeas e caldos magros

O Senhor dos Aflitos lhes dá esperança

A agulha os guiará pelas águas diáfanas

Peixe será ouro nos seus desejos

publicado por Brito Ribeiro às 16:36

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